No avião que caiu na Etiópia morreu uma parte da humanidade

Entre as 157 vítimas havia médicos, políticos, diplomatas e cooperantes. Pelo menos 19 eram trabalhadores de agências das Nações Unidas. Queda de avião da Ethiopian Airlines é o segundo acidente grave com o Boeing 737-8 Max.
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As Nações Unidas já pediram às suas delegações no mundo inteiro que deixem as suas bandeiras a meia haste. A organização está de luto pela morte de 19 funcionários na queda do avião da Ethiopian Airlines na manhã de domingo, a 60 quilómetros de capital Adis Abeba. O voo levantara há seis minutos da capital etíope a caminho de Nairobi quando se despenhou, matando todas as 157 pessoas que viajavam a bordo.

Na maioria dos casos, eram trabalhadores humanitários que trabalhavam para agências da ONU como o Alto Comissariado para os Refugiados (ACNUR), a Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO) ou o Programa Alimentar Mundial (WFP). A agência de notícias AP diz que há vários médicos neste grupo, que trabalhavam em campanhas de apoio às populações africanas mais necessitadas.

Aos poucos, começam a ser divulgadas as identidades de alguns passageiros. O jornal italiano La Reppublica identificou os oito italianos que morreram, entre os quais o diretor de logística da delegação regional do WFP, Djordje Vdovic, de origem sérvia. O Irish Times confirmou a morte de Michael Ryan, engenheiro irlandês que trabalhava para a FAO, desenvolvendo projetos de captação de água para populações africanas assoladas pela seca. Também o pai da inglesa Joanna Toole, que trabalhava igualmente para a FAO, confirmou o desaparecimento da filha.

Além dos funcionários da ONU, há uma série de trabalhadores humanitários de várias ONGs que atuavam na África Oriental que morreram na manhã de domingo. O etíope Tamirat Mulu Demessie, que trabalhava para a Save The Children, é um dos nomes confirmados. O seu trabalho era resgatar crianças das situações de conflito e ajudá-las a reencontrar as famílias.

Carlo Spino, a sua mulher Gabriella Vigiani e um amigo de ambos, Matteo Ravasio, eram médicos italianos e dirigiam a organização Africa Tremila. Construíam hospitais no Sudão do Sul, considerado pelo FMI o país mais pobre do mundo. Paolo Dieci, da mesma nacionalidade, era diretor do Comité Internacional para o Desenvolvimento dos Povos, que organizava programas de desenvolvimento sustentável em comunidades vulneráveis.

A concentração de cooperantes a tomar o voo da Ethiopian Airlines pode ter uma explicação: é que na terça feira, 12 de março, arrancavam no Quénia duas importantes conferências sob o auspício das Nações Unidas: a Assembleia da ONU para o Meio Ambiente e uma conferência de arqueologia da UNESCO.

Entre estes estão seguramente Sebastiano Tusa, arqueólogo marinho italiano, e Abiodun Oluremi Bashua, antigo embaixador da Nigéria no Irão, Áustria e Costa do Marfim e era agora interlocutor do país para as missões de paz da ONU em África. Pius Adesanmi, um professor universitário canadiano de origem nigeriana, também perdeu a vida neste voo. Era escritor e ativista pela democracia em África. O Canadá é o segundo país com mais vítimas (18), atrás do Quénia (32).

Os jornais chineses lamentaram a morte de oito cidadãos do país, incluindo um funcionário da Agência da ONU para o Ambiente, um empregado da Corporação da Indústria Aeronáutica da China e outro da Corporação da Indústria Eletrónica e Tecnológica. A Suécia chora por Jonathan Seex, dono de várias cadeias de hotéis em África.

Na Eslováquia, a tragédia bateu diretamente à porta do deputado Anton Hrnko. Horas depois da notícia do acidente, o vice-presidente da bancada parlamentar do Partido Nacionalista Eslovaco escreveu um post no Facebook anunciando que a mulher Blanka, o filho Martin e a filha Michal tinham morrido no desastre.

As 157 pessoas que perderam a vida no voo da Ethiopian eram de 35 nacionalidades diferentes. Quénia com 32, Canadá com 18 e Etiópia com 9 são os países que perderam mais cidadãos. China, Itália e Estados Unidos perderam oito pessoas cada, o Reino e a França têm a assinalar sete mortos, seguindo-se Egito (6 pessoas), Alemanha (5), Índia e Eslováquia, cada uma com quatro. A lista segue com uma série de cidadãos de países, sobretudo africanos e europeus.

Duas tragédias em quatro meses com novo modelo da Boeing

No espaço de pouco mais de quatro meses, o Boeing 737-8 Max - que teve o seu batismo de voo em 2016 e só entre o final de 2017 e o ano passado começou a ser operado regularmente pelas companhias aéreas - já esteve envolvido em dois acidentes graves, que causaram a morte de um total de 346 pessoas.

A somar às157 vítimas da Ethiopian Airlineshá as 189 vidas que se perderam em 2018. No dia 28 de outubro de 2018, um aparelho idêntico, operado pela companhia low cost Lion Air, da Indonésia, que ligava Jacarta à estância turística de Pangkalpinang, caiu no mar. Também não houve sobreviventes.

Coincidências às quais se soma o facto de ambos os aviões se terem despenhado pouco após a descolagem. No caso do voo da Lion Air, o acidente deu-se aos 13 minutos de voo. Na Etiópia, a informação é de que o aparelho tinha também partido há seis minutos quando caiu.

Na Indonésia, a Lion Air confirmou, após o acidente de outubro, que tinha sido detetado anteriormente um problema técnico no aparelho mas que este fora resolvido de acordo com os procedimentos previstos. Desta vez, há relatos do controlo de tráfego aéreo de Adis Abeba de que o aparelho mostrava "velocidade vertical instável após a descolagem".

Motivos mais do que suficientes para fazerem disparar os sinais de alarme em relação a este modelo específico da Boeing, ainda que não existam conclusões sobre as causas do acidente da Indonésia e, naturalmente, nada se saiba ainda de concreto e oficial sobre o que causou esta nova tragédia.

Tanto o fabricante norte-americano de aviões como a CFM International - parceria entre a General Electric e a Safran que é responsável pelo fabrico dos motores - já manifestaram toda a disponibilidade para participar na investigação, tal como tinham feito em outubro.

Oficialmente, nem os fabricantes, nem as autoridades aeronáuticas, nem as próprias companhias puseram ainda a hipótese de suspender a atividade destes aparelhos até que as causas dos acidentes sejam investigadas. No entanto, não é impossível que venham a fazê-lo.

O National Transport Safety Board (NTSB), agência governamental independente dos Estados Unidos, já confirmou que enviará uma equipa técnica de quatro pessoas à Indonésia para apoiar as investigações. E a autoridade de segurança aérea norte-americana, a Federal Aviation Administration (FAA), informou também estar a "monitorizar de perto" esta questão.

Na Indonésia, Alvin Lie, perito em aviação e antigo legislador, também já defendeu, segundo o Jacarta Post , que as autoridades devem estar preparadas para suspender a qualquer momento todos os voos com este aparelho.

No caso da Indonésia, as notícias iniciais após o acidente deram sobretudo ênfase à Lion Air, que já tinha tido problemas no passado, chegando mesmo a ser impedida de operar quer para os Estados a Unidos quer para a Europa. Mas a Ethiopian Airlines é uma companhia muito respeitada, sendo considerada uma das melhores do continente africano e integrando a Star Alliance, da qual fazem parte, entre outras, a Lufthansa, a United, a Suiss e a portuguesa TAP.

Problemas técnicos remontam a 2017

Os dois acidentes obrigam também a olhar com outra luz para os problemas iniciais com o novo modelo da Boeing. Em 2017, ainda durante a fase de testes, o fabricante suspendeu temporariamente todos os voos do 737-8 Max devido a preocupações relativas aos novos motores do 737. Na altura, recorda a CNN, Jamie Jewell, porta-voz da CFM, confirmou que uma inspeção tinha detetado "algumas anomalias no processo" de fabrico dos discos para as turbinas a jato mas classificou a decisão de suspender os voos como uma mera precaução.

Mas as questões técnicas - que não são invulgares com novos modelos - continuaram a surgir ocasionalmente. Ainda na passada quinta-feira a United Airlines suspendeu a operação de 14 aparelhos, cancelando 40 voos, devido a problemas com a instalação das bagageiras superiores dos aparelhos.

O 8 Max - que mantém a longa tradição dos 737 da Boeing - é considerado pela indústria um modelo revolucionário, nomeadamente pelos seus motores LEAP-1B, 10% a 12% mais eficazes do que o modelo antecessor ao nível dos consumos de combustível, e a capacidade de transportar mais 31 pessoas, num total de 220 passageiros.

Características que despertaram grande interesse das companhias aéreas, nomeadamente das low cost. No final de janeiro, a Boeing confirmou um total de 5011 encomendas do modelo, recebidas de um total de 79 clientes distintos. Nos três primeiros lugares, todas com mais de 200 encomendas, estavam a Southwest, a Flydubai e...a Lion Air.

A TAP, cuja frota é constituída pelo europeu Airbus, não consta da lista de clientes, ainda que várias operadoras internacionais que voam para e de Portugal o tenham nas suas frotas.

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