"No auge da dureza do Giro não apetece nada voltar no dia a seguir, mas desistir não é opção"

Único português na Volta a Itália 2023 quer chegar ao pódio e até erguer "o troféu mais bonito". Diz que já não tem mau perder e já chegou mais longe do que alguma vez pensou. Tour 2024 é um objetivo.
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Ciclista de A-dos-Francos (Caldas da Rainha) vai liderar a UAE Emirates no Giro 2023. João Almeida vive e treina em Andorra e aponta ao pódio na quarta Volta a Itália da carreira aos 24 anos. A 106.ª edição da prova arranca no sábado (dia 6) em Fossacesia Marina (Abruzzo) e termina dia 28, junto ao Coliseu de Roma.

Depois do 4.º lugar, em 2020, do 6.º lugar, em 2021, e de uma desistência forçada devido à covid-19, em 2022, que João Almeida teremos no Giro 2023?
Um João Almeida a lutar pelo pódio. Ficar nos três primeiros é o objetivo. Qualquer lugar do pódio me vai deixar muito feliz, mas se ficar em primeiro é claro que ficarei ainda mais feliz. Só um pode ganhar e que ganhe o melhor... e espero que o melhor seja eu para poder erguer o troféu mais bonito do ciclismo.

Quem vai dar mais luta este ano?
Os melhores vão estar lá e a dar luta. Os principais candidatos são o belga Remco Evenepoel, atual campeão mundial, o esloveno Primoz Roglic, tricampeão da Volta à Espanha.

O Giro é uma das três grandes voltas, juntamente com o Tour (França) e a Vuelta (Espanha). São três semanas na estrada a pedalar. Como se prepara para uma prova tão intensa e desgastante?
Sinto-me bem fisicamente, estou preparado para ir para a estrada. As provas até agora têm-me corrido bem, sinto que estou em forma e diria que tem tudo para correr bem. Da teoria à prática por vezes vai uma longa distância, mas espero que não seja o caso. A preparação para o Giro 2023 começou basicamente em novembro do ano passado e incluiu competir ao longo destes meses, como a Volta ao Algarve e a Volta a Catalunha. O pré-Giro é mais para acertar pormenores e ajudar a ser mais consistente, que é muito importante. A última semana será decisiva.

E mentalmente? Já está mentalizado que é chefe de fila da UEA Emirates e confortável no papel de líder?
(risos) Boa questão. Mentalmente o Giro é muito duro, mas sim, já estou bem nesse papel de líder e ter colegas a trabalhar para mim. Já estive do outro lado e sei como é. A experiência deu-me confiança para isso e agora começa a ser o lado mais fácil. Trabalhar em equipa e sacrificar-se pela equipa é muito importante. O melhor e mais talentoso corredor sem uma boa equipa ao seu lado não consegue ganhar. Tenho os parceiro ideais para lutar pela vitória: Pascal Ackermann, Alessandro Covi, Ryan Gibbons, Davide Formolo, Brandon McNulty, Diego Ulissi e Jay Vine. O meu perfil é de alguém discreto, mas sempre gostei de liderar, sempre fui muito competitivo e sempre gostei de ganhar. Desde miúdo que qualquer coisa que faço é para vencer, ser o melhor, festejar a vitória, mesmo nas coisas mais banais da vida. Tinha muito mau perder quando era pequeno...

Quem é que sofria mais com esse mau perder?
A minha prima. Batalha naval, xadrez, damas... o que fosse. Quando perdia ficava fulo e acusava-a logo de fazer batota (risos). Ainda hoje quando falamos lá vem uma ou outra lembrança disso. Mas hoje em dia já não tenho maus perder.

Não? As vitórias superam as derrotas...
Também é um pouco isso. Fui aprendendo com as derrotas e a lidar com elas. Agora as vitórias são mais do que as derrotas e já sei lidar com isso e consigo perceber e aceitar que se perdi foi porque o adversário foi melhor do que eu. Como eu costumo dizer temos de estar preparados para ter dias de merda.

Depois de se estrear no Giro 2020 com um 4.º lugar e dormir com a camisola rosa (de líder da prova) durante mais de duas semanas imagino que a Volta a Itália seja a sua prova de eleição...
Sim, o Giro é a prova e eleição, apesar do Tour ainda não estar nessa equação. O ano passado não correu bem devido à covid-19. Um teste positivo obrigou-me a desistir e estragou-me bastante os planos. Fiquei muito chateado. Numa escala de 0 a 10 cheguei aos 20... Estava em boa forma, sentia-me bem, não tinha sintomas e ter de abandonar a corrida assim foi muito triste, muito triste. Foi muito difícil, custou muito, bastante. Estava em 4.º da geral e tinha quase a certeza que ia alcançar o objetivo de terminar no pódio. Sabia que era uma questão de tempo e depois puxaram-me o tapete.

Citaçãocitacao"Para o ano gostaria de ir ao Tour, mudar de ares e fazer um calendário diferente. Estou habituado a correr em agosto com mais de 30 graus e talvez me desse bem no Tour."

E quando é que o Tour entra em equação?
Como pessoa não gosto de fazer planos. Sou espontâneo e gosto mais de fazer o que me apetecer na altura, diria que sou organizado na minha desorganização. Como atleta sou mais metódico e gosto de fazer o melhor planeamento possível. Para o ano gostaria de ir ao Tour, mudar de ares e fazer um calendário diferente. Estou habituado a correr na zona de A-dos-Francos e nas Caldas da Rainha em agosto com mais de 30 graus e talvez me desse bem no Tour [este ano corre-se de 1 a 23 de julho]. Se bem que agora só lá passo o inverno. O resto do ano, além dos estágios e das provas, é passado em Andorra, na zona dos Pirinéus, onde vivo e me permite treinar montanha e fazer treino em altitude. Para mim praia é só para passear, admirar o mar ou fazer um piquenique. Vou mais vezes à praia vestido do que para ir tomar banho. Já apanho sol na estrada o ano inteiro (risos). Em Andorra sinto-me me casa. Gosto muito do ambiente, é o país dos ciclistas.

Olhando para o início, era aqui que queria chegar, quando pensou ser ciclista?
Acho que cheguei muito mais longe do que alguma vez pensei chegar. Sou uma pessoa feliz e realizada. Os meus treinadores, os meus pais, família e amigos sempre se atreveram a sonhar por mim.

Até que ponto o Giro de 2020 o ajudou a sonhar também?
Antes do Giro 2020 me dar a conhecer já fazia parte do World Tour e já tinha a certeza que iria fazer uma carreira internacional, mas ajudou-me a perceber que seria um ciclista de grandes voltas, nesse aspeto foi um boa surpresa até para mim. Ter o João Correia como empresário ajudou a acelerar a internacionalização. Agora , o meu objetivo de carreira já não passa por um regresso a Portugal. Posso até terminar a carreira sem fazer uma Volta a Portugal.

Os 30/40/50 km finais que são transmitidos na televisão são uma ínfima parte das etapas, mas mostram sempre paisagens deslumbrantes. Dá para apreciar?
Não. É uma prova bonita, dá imagens espetaculares, mas só não vemos nada. A concentração é tal que só vemos a estrada e ouvimos o carro de apoio. Paisagens bonitas só nas fotos e depois de acabar a corrida. Dependendo do ritmo até dá para pensar um pouco na vida. Só a comunidade do ciclismo e quem nos acompanha é que sabe o sacrifício que é estar 230 Km a pedalar durante três semanas. No auge da dureza do Giro, no final de algumas etapas, não apetece nada voltar no dia a seguir, mas desistir não é opção. Entre a emoção de iniciar uma etapa e a dureza de a terminar, prefiro cortar a meta.

Quem é o João Almeida que colocou o Giro na agenda dos portugueses?
Um rapaz calmo, que gosta de se divertir e aproveitar a vida. Que gosta de passar tempo em família e com a namorada e relaxar em quanto pode. Gosto de carros e acompanho algumas competições. Ter os portugueses à espera de ver começar o Giro por minha causa é espetacular. Tenho noção que tenho responsabilidades nessa expectativa criada e o apoio que me enviam faz valer a pena todos os sacrifícios.

O ciclismo português passa por dias complicados. A extinção da W52-FC Porto por causa de doping e o processo Prova Limpa, com ciclistas a ir a tribunal. Como olha para isto? Sente que a imagem do ciclismo foi prejudicada? Sente desconfiança?
A imagem do ciclismo português e dos ciclistas que correm em Portugal foi afetada, a minha e a do ciclista português não sinto que tenha sido. É triste o que aconteceu e espero que se aprenda com os erros. A credibilidade do ciclista português a nível internacional não sinto que tenha sido afetada. O passado recente pode ter fechado algumas portas, porque os olhos do ciclismo internacional estavam postos em Portugal, mas acho que há mais [João] Almeidas, [Rúben] Guerreiros, [Ivo, Rui e Nélson] Oliveiras e Rui [Costas] no ciclismo português e só precisam de uma oportunidade para o mostrar.

Citaçãocitacao"A bicicleta pesa um pouco mais de 6 Kg. Temos uma relação de grande cumplicidade. Passo mais tempo com ela do que com a família. Nunca me desilude. Quando corre mal a culpa é do ciclista."

isaura.almeida@dn.pt

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