"A prova que ecologia assusta é que Bolsonaro, Trump, Salvini são climatocéticos"
Damien Carême falou com o DN antes da vinda a Lisboa hoje para receber o Prémio Norte-Sul pelo trabalho à frente da Câmara de Grande-Synthe entre 2001 e 2019. Como autarca, o agora eurodeputado francês criou e aplicou várias mudanças no município francês, assentes numa política de ecologia social. Foi também um defensor dos direitos dos migrantes, tendo construído um campo humanitário, em 2015, que abrigou milhares de pessoas que viram a sua entrada bloqueada, entre França e o Reino Unido.
O galardão, atribuído pelo Conselho da Europa desde 1995, distingue ainda neste ano a gambiana Jaha Dukureh, submetida a mutilação genital logo com uma semana de vida e forçada a casar com apenas 15 anos. Embaixadora da boa vontade da ONU para África, fundou em 2013 a ONG Safe Hands for Girls, para defender o fim da mutilação genital feminina e do casamento precoce, infantil e forçado.
Recebe o Prémio Norte-Sul pelo seu trabalho como presidente da Câmara de Grande-Synthe. Estes prémios são importantes para chamar a atenção para questões como a ecologia, o clima?
Espero que sim. E não é só a ecologia, vou também receber o prémio graças ao acolhimento dado aos migrantes no meu município. Isso também é importante para mim porque a ecologia é isso tudo. Fiquei muito orgulhoso e emocionado por ter sido escolhido para ser galardoado com este prémio. Já premiaram Simone Veil, Stéphane Hessel, que para mim são grandes franceses, com grandes feitos. E pensar que vou receber o mesmo prémio do que eles, entregue pelo Conselho da Europa é importante para as causas que defendi nos últimos 18 anos como presidente da Câmara. É o reconhecimento do trabalho realizado.
A ecologia e o acolhimento de emigrantes são duas causas...
Que estão ligadas! Para mim, as origens das migrações são várias. Nós, os ditos países desenvolvidos, brincamos com algumas ditaduras em países, como os do Médio Oriente, para aceder ao seu petróleo. Foi o que aconteceu com Saddam Hussein, no Iraque. Brincamos também com alguns ditadores africanos para aceder ao urânio que há no seu subsolo. E desestabilizamos os regimes nesses países, instala-se uma espécie de corrupção, há muito dinheiro a circular nas mãos de uns poucos. E isso tudo para satisfazer as nossas necessidades enquanto grandes consumidores, que têm um impacto negativo sobre as alterações climáticas. Esse é o primeiro ponto. O segundo é que as alterações climáticas já estão a criar desordem em vários países e vão ser cada vez mais os deslocados. Neste momento deslocam-se dentro do próprio país ou para os países vizinhos, mas dentro de alguns anos fala-se em 240 milhões de pessoas deslocadas no mundo. E porquê? Muitas vezes são países que não têm o mesmo modelo de desenvolvimento que nós e sofrem as consequências do nosso modelo, gerando uma crise. Para mim, quando defendemos a ecologia, defendemos o respeito dos seres vivos. Por isso junto as duas coisas.
Nos seus 18 anos como presidente da Câmara de Grande-Synthe, tentou juntar estes dois aspetos. Recebeu migrantes, desenvolveu projetos como o eco-pastoreio, introduziu o 100% biológico nas cantinas. Todas estas medidas, sente que serviram de modelo a outras cidades?
Eu o que quis fazer em primeiro lugar foi dar respostas à minha comunidade. Às dificuldades que enfrenta. Há 28% de desemprego na minha cidade, 33% das famílias vivem abaixo do limiar da pobreza, por isso tentei encontrar respostas aos seus problemas. Para lhes permitir continuar a viver com dignidade, apesar das dificuldades. Ao garantir-lhes uma alimentação de qualidade, tentando que não fiquem doentes, evitando o uso de produtos perigosos, incentivando a que tenham comportamentos mais atentos aos problemas de saúde. Tornámos os transportes gratuitos, desenvolvemos a natureza para melhorar a qualidade de vida, etc. Foi feita muita coisa para que os habitantes de Grande-Synthe vivam o melhor possível todos os dias. É o modelo que desenvolvemos à escala de um município, e que se aplica a todos os domínios do quotidiano: alojamento, urbanismo, transporte, alimentação, cultura, saúde, educação. Tudo isso pode ser aplicado noutro local e tudo isto é uma verdadeira resposta às crises que vivemos na Europa e no mundo. Crises climáticas, crises energéticas, crises sanitárias, crises agrícolas. As nossas cantinas escolares são 100% biológicas desde 2011. Neste ano passaram a ser 100% biológicas e locais. Porque comprámos terrenos agrícolas, metemos lá a trabalhar jovens agricultores e eles fornecem-nos aquilo de que precisamos. Criámos empregos na agricultura. Há muitos municípios que vêm ver o que estamos a fazer e podem não copiar tudo, mas transpõem algumas coisas.
Há uma grande resistência da classe política a este modelo ou sente que há cada vez mais abertura?
Há cada vez mais abertura, mas ainda há resistência. Porque se faço isto por um lado, por outro oponho-me a projetos industriais poluentes - temos a taxa de cancro das vias digestivas superiores mais alta da Europa! Chega. Temos de caminhar para um outro modelo de desenvolvimento diferente. Às vezes é preciso tomar posições políticas fortes. E os políticos por vezes não aceitam isso. Argumentam com a necessidade de criar emprego. Mas se criamos emprego para que as pessoas morram em média cinco anos mais cedo do que noutros sítios, a mim não me interessa. Por vezes, é preciso ter uma lógica coerente de ponta a ponta. Essa coerência é útil mas parece ter mais dificuldade em se impor na paisagem política. Há eleitos que cumprem o 100% biológico nas cantinas, mas não apostam no local, não apostam numa política de mobilidade para os seus residentes, não evitam construir em cima dos terrenos agrícolas. Nós lutámos e somos coerentes em todas as áreas. Por isso, sim, há mais abertura. Mas não suficientemente depressa face à urgência da situação. Estou convencido de que os cidadãos estão mais avançados do que os políticos.
Os políticos estão muito condicionados pelos interesses económicos?
Sim, pelos lóbis. E têm medo de mudar as coisas porque é a reeleição que está em causa. Preferem fazer como sempre fizeram e não correr riscos. Falta audácia política. Falta coragem política.
Como vê o movimento de jovens pelo ambiente iniciado pela sueca Greta Thunberg?
Maravilhoso! Mas já vem tarde. Não podemos esperar que eles cheguem ao poder para fazerem as coisas. Greta tem que idade, 14 anos?
Tem 16...
Não podemos esperar dez anos que ela tenha 26 anos e comece a vida profissional. É ótimo que ela seja ativista hoje, que desperte consciências, que chame à razão os adultos, os políticos que podem decidir. E está a ter um efeito bola de neve: em França, por exemplo, houve dez mil estudantes que recusaram ir fazer estágios em empresas poluentes. Há muita coisa a acontecer que coloca a pressão sobre os políticos. Foi apresentada uma queixa contra o Estado francês que conseguiu dois milhões de assinaturas. Há muita coisa a acontecer que exige que os poderes políticos mudem. Mas a mudança é lenta. E o tempo urge.
É duro com a atuação do Estado francês nesta área. Quais as suas principais críticas?
Não sou duro. Sou realista. Sou aquilo que ele merece. A minha maior crítica é em relação à falta de coragem. E o facto de estar nas mãos dos lóbis - do nuclear, da agricultura, dos transportes, dos construtores automóveis. De todos. Aliás, o primeiro-ministro é um antigo lobista do nuclear. E há muitos outros. A ministra da Saúde era uma lobista dos medicamentos. E nem este governo nem os anteriores - o de François Hollande, o de Nicolas Sarkozy - tiveram coragem política para mudar radicalmente o modelo. É isso que é preciso fazer. Hoje. Há especialistas que nos dão cinco anos, outros dizem dez. Seja como for, está iminente. Temos de aplicar políticas já. Porque vai demorar algum tempo a tornarem-se efetivas. Por isso devia ser a prioridade de qualquer político digno desse nome. O seu combate devia ser garantir um futuro para os nossos filhos. E para isso é preciso mudar o modelo. Estamos a fazer asneira. Anunciamos coisas, mas na prática não se faz nada.
O tempo urge. Mas quando olhamos à volta, vemos Donald Trump nos EUA, Jair Bolsonaro no Brasil, teme-se o pior?
Estamos ao mais alto nível, já (ri-se). São formas de ditadura que chegam. Bolsonaro no Brasil, mas na Europa também. Temos Matteo Salvini em Itália, Viktor Órban na Hungria, Jaroslaw Kaczynski na Polónia. Quando dizemos que a ecologia é uma coisa que assusta, a prova é que todos eles são climatocéticos, homofóbicos, são pessoas que são contra... as pessoas. E isso é terrível. A chegada de Salvini em Itália teve que ver com a falta de solidariedade da Europa em relação ao problema do acolhimento dos migrantes. Deixámos que eles resolvessem porque eram o primeiro país de chegada. Quando falo com brasileiros, eles explicam que Bolsonaro só foi eleito porque as pessoas estavam cansadas da corrupção e ele era o menos corrupto. Votaram nele não por estarem ligados a um fascista mas porque era menos corrupto. E os americanos colocaram um louco no poder. Isso é incompreensível. Deram uma lição ao mundo ao eleger Barack Obama e depois elegem Trump!
Foi eleito eurodeputado nas eleições de maio. Vai levar esta luta pelo clima e pelo acolhimento de migrantes para a Europa?
Claro. No fundo o que fiz a nível local no que se refere ao acolhimento de quem procura refúgio (não lhes chamo refugiados) foi provar que quando temos vontade de os receber, recebemos. E a população não reagiu mal. Pelo contrário. Foi solidária. Criámos uma cidade ecológica, uma espécie de minicomunidade ecológica. Depois há coisas que saem fora da alçada da cidade. E essas lutas temos de as ir travar noutro sítio. É isso que quero fazer ao nível europeu, em áreas como o acolhimento, a imigração, a política agrícola comum, a luta contra as alterações climáticas. Vou usar a minha experiência local para levar essas lutas a uma nova dimensão - a europeia.