"Ninguém aluga quartos ou casas a pessoas doentes"

Há quem goste de fazer o que faz e de ter uma banda. Há quem goste de ter causas, não só nos tribunais, mas na sociedade civil. Por tudo isto, no dia 26, nove bandas, oito de advogados e uma de juízes, sobem ao palco do Campo Pequeno. É o Rock 'n' Law a ajudar doentes com leucemia.
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Antónia teve de gastar os seis mil escudos que poupou ao longo da vida para descobrir o que tinha. Há muito que não se sentia bem. A falta de força e os desmaios chegavam de repente e atiravam-na para a cama. Não conseguia fazer a venda de peixe ou de comida feita por si nas ruas de Santiago, na Praia, Cabo Verde. Foi várias vezes ao hospital da cidade, nunca lhe descobriram doença alguma. Voltava para casa. Um dia melhor, outro pior. Ela não era assim. O corpo sempre lhe obedeceu. Criou dois filhos sozinha.

Mas naquele ano de 2012, durante muitos meses, "as tonturas vinham e não me levantava. Um dia disse ao meu filho 'Vou agarrar nos seis mil escudos [mais ao menos 50 euros] e vou à clínica [uma unidade privada da cidade]'. Paguei consulta e exames e descobriram a doença. O médico disse-me: 'Antónia, você não pode ser tratada aqui, vou mandá-la para o hospital e depois vai ter de ir para Portugal'. Estive internada muitos dias. Cheguei cá em fevereiro de 2013. Sozinha. Foi muito difícil. Eu caía na rua. A ambulância levava-me para o hospital. Achavam que era da doença, mas eu sabia que era de desgosto".

Antónia, porque nasceu a 13 de junho, dia de Santo António, conta a sua história sem drama. Passaram mais de cinco anos, "sou forte", diz de sorriso nos lábios. "A família pensava que eu ia morrer com esta doença maldita, mas estou cá." A mulher de metro e meio que está à nossa frente tem agora 59 anos e sobreviveu a todos os embates do linfoma que a atacou, até ao facto de ter dois irmãos compatíveis para serem seus dadores no transplante e ter de esperar por um outro, por eles não poderem vir a Lisboa ajudá-la. Viveu tudo sozinha. Muitas vezes sem ter onde dormir. Valeu-lhe a ajuda de muitos, enfermeiros, médicos, de quem não esquece os nomes, e dos técnicos da associação contra a leucemia.

"Nunca tinha sentido discriminação, a não ser como doente crónica"

Priscilla Barbosa saiu de São Paulo há 15 anos. Veio para Portugal com a ideia de fazer o que gostava, design gráfico. Foi para isso que estudou no Brasil. Não foi fácil, "tinha trabalhos e depois não pagavam e eu tinha de me sustentar". Um dia um amigo disse-lhe para experimentar outra coisa. Levou-a à cozinha de um restauranteMichelin. Adorou. Ali descobriu arte. "É arte que faz na cozinha Michelin. Cria-se, constantemente", diz sem hesitação. Aprendeu muito. Na memória retém chefs "que me apadrinharam, ajudaram e ensinaram."

Viajou pela Europa. Fez formação em França. E regressou a Lisboa. Já com o estatuto de cozinheiraMichelin, não de chef, mas isso também estava nas suas ambições. Integrou a equipa de alguns restaurantes do país com estrelas amarelas. Tudo fluía. Até que se sentiu "sem forças, chorava para ir trabalhar, ia à casa de banho e adormecia". Deixou de andar, achava que era cansaço e que havia de passar. Não passou. Sentiu-se tão mal que teve de ir à urgência de São José, em Lisboa. Fez exames e viram logo o que era. Reencaminharam-na para o Curry Cabral e só aí é que soube. "Era um linfoma deHodgkin. Não fiquei em choque. Não sei se fui ingénua ou se me deram a notícia de forma muito soft. Achei que a minha vida não ia mudar muito. Durante os tratamentos ia ao ginásio, trabalhava, a médica mandava-me ir com calma, mas queria responder a tudo. E não conseguia."

Priscilla acabou por sair do restaurante onde estava em Sintra. Deixou a casa que habitava, passou a viver em quartos e desfez-se de muita coisa. Aos 35 anos restam-lhe duas malas. Só não se desfez da vontade de viver. E hoje tanto pode estar em Lisboa, no Areeiro ou em Alcântara, como na Madeira, a mais de duas horas de distância de avião, ou em qualquer outra parte do mundo. "Tenho amigos em muitos sítios", afirma.

Foi a opção que tomou para sobreviver, mas também porque sentiu na pele a discriminação. "Já passei por muito, já fui ilegal, fugi ao SEF, tive de sobreviver, e nunca tinha sentido discriminação, a não ser agora como doente crónica. Ninguém quer alugar um quarto ou uma casa a uma pessoa doente."

Cláudio Grácio tem 26 anos e nunca tinha saído da terra onde nasceu, Abrantes, até ter de vir para Lisboa, para ser tratado no Hospital dos Capuchos, e depois para o Porto, para o Instituto Português de Oncologia (IPO). Já lá vão três anos. A idade fazia que fosse quase sempre o mais novo nas enfermarias de adultos. Estava habituado à família, quando descobriu a doença já vivia com a sua companheira. "Sabia que algo não estava bem, perdi muito peso de repente. Um dia fui à urgência em Abrantes e mandaram-me logo para Lisboa." Não foi fácil, mas o pior estava para vir.

"O estar sozinho sem ter quem me ajudasse foi o pior. Havia dias que não conseguia pegar nos talheres para comer. Nos Capuchos, éramos uma família, mas eu era o mais novo, muitas vezes tinha de me desenvencilhar sozinho. Os funcionários não chegavam para todos os doentes." A família ia vê-lo ao fim de semana, e nem sempre. "Quando podia", confessa. Os pais trabalhavam, a mulher também. Houve alturas em que a mãe e a mulher se revezavam, mas não tinham sítio para ficar em Lisboa. "Não era possível alugar um quarto, uma casa ou ficar num hotel."

Reagiu à medicação e ao fim de dois anos regressou a casa. Em março deste ano teve uma recaída. Voltou a Lisboa, aos Capuchos, e colocaram-lhe a hipótese de transplante. O que pensou de imediato foi: "Vou passar tudo sozinho outra vez." Disseram-lhe que o transplante tinha de ser no Porto. "Pior ainda. Não eram 150 quilómetros, eram mais de 250. A família não sabia como me apoiar." Mas tudo se resolveu. A assistente social do IPO encaminhou-o para a Associação Acreditar. Cláudio estava no limiar dos 25 anos e ainda conseguiu que lhe arranjassem um quarto. Ali ficou. Às vezes com a mãe, outras com a mulher e o filho que nasceu em maio, quando ele estava no hospital. "Na altura, vi a diferença. Fiz o transplante e com a família ao pé consegui passar os momentos mais difíceis."

Não importa que a distância seja de 150 quilómetros, de oito mil ou de três mil. Não importa que a cidade de onde se vem seja de Portugal, do Brasil ou de Cabo Verde. Importa que todos são iguais na doença. Porque quando se está sozinho nem sempre conseguem tratar deles próprios. "Não temos força, desmaiamos, não conseguimos andar ou até falar. Não é porque queiramos, mas porque não podemos tratar de nós próprios", desabafa Priscilla.

Rock 'n' Law quer angariar 70 mil euros

Mas é para mudar esta realidade que sociedades de advogados decidiram apoiar neste ano um projeto da Associação Portuguesa contra a Leucemia que prevê a construção da Casa Porto Seguro. A APCL foi a entidade escolhida para receber o donativo do espetáculo que assinala a décima edição do Rock 'n' Law, no dia 26, no Campo Pequeno.

São nove bandas que vão subir ao palco, oito de advogados e uma de juízes. É a novidade deste ano. A verba, que a organização espera que ultrapasse o montante do ano passado, 70 mil euros, irá apoiar a construção desta casa para doentes carenciados.

"Sempre foi um objetivo da associação desde a sua fundação há 20 anos, mas na altura havia outra prioridade, que era a de criar um banco de dadores de medula. Durante anos, todas as energias e investimentos foram canalizados para aí. Hoje temos o segundo maior banco de dadores da Europa e o terceiro do mundo. E agora as prioridades já podem ser outras", explica Carlos Horta e Costa vice-presidente da APCL. Acrescentando: "No país há quatro centros de transplantes, dois em Lisboa, um no Porto e outro em Coimbra, e nem todos os doentes moram nestas cidades. Quem não mora tem a vida dificultada à partida. Na região sul temos casos de doentes que vêm do Alentejo a Lisboa três vezes por semana para tratamentos. Vão e vêm no mesmo dia. Isto retira-lhes qualidade de vida. É um desgaste muito grande e já basta a doença."

Carlos Horta Costa conta ao DN que foi o objetivo de dar mais qualidade de vida na doença a todos os casos que lhes chegam através das assistentes sociais das unidades hospitalares que os fez avançar com o projeto para esta residência. "Nos últimos anos temos tido vários casos com esta necessidade. Temos doentes que para serem apoiados, os maridos e as mulheres ficaram sem emprego, e a sua condição económica ficou muito complicada."

Há um ano a APCL encontrou a casa que pretendia. "Tinha de ser junto aos hospitais e com algumas características e conseguimos encontrar o espaço ideal, a 500 metros do IPO e a dois quilómetros do Hospital Santa Maria, os dois centros de tratamento. A casa vai ter oito quartos", explica o vice-presidente da APCL. "O contrato de arrendamento é por 50 anos, a recuperação está a cargo da associação e o investimento previsto é de 550 mil euros. Há muito para fazer e por isso decidimos candidatar-nos ao patrocínio do Rock 'n' Law. Eles fizeram uma avaliação do projeto através de várias entrevistas e acabaram por nos escolher", conta. O objetivo é que no final do primeiro trimestre do próximo ano as obras possam avançar.

Antónia, Priscilla e Cláudio esperam não vir a precisar de usufruir desta casa. A meta para eles é regressar a casa, às suas terras, ou encontrar o próprio espaço, no caso de Priscilla. Mas aceitaram contar as suas histórias para poderem ajudar os outros, porque quando se fica doente "ninguém quer saber de ti", afirma Priscilla. Sobretudo as instituições, os senhorios, os patrões, etc.

Priscilla não está sozinha. "Tenho amigos", diz, mas tinha-lhe sabido bem a ajuda da família quando esteve em tratamentos. A mãe, com muita idade, ainda veio do Brasil para ficar durante um mês quando ela foi transplantada, mas teve de regressar.

Cresceu a fazer voluntariado, porque se sentia útil a ajudar os outros, e continuou a fazê-lo quando veio para Portugal e mesmo com a doença. Priscilla passou a vasculhar a legislação para conhecer os seus direitos e a palmilhar a cidade para saber onde ir e a quem recorrer. Depois, "ia ao hospital ajudar outros doentes que não tinham tanta flexibilidade para tratar da burocracia e um dia juntei-me à APCL para ajudar no que fosse preciso". Frequenta o grupo de apoio psicológico da associação. Ali, com outras pessoas, partilha dúvidas, sentimentos, emoções e sempre muita vontade de viver. É algo que lhe faz bem. Espera que este espetáculo de rock seja um sucesso e que apoie o projeto da APCL.

Quase um ano depois do seu autotransplante, em fevereiro deste ano, diz que vai aguardar pelo próximo prognóstico. Sabe que a profissão que tinha, se calhar, não vai poder exercer. "Perdi alguma sensibilidade e quando voltei ao trabalho depois do primeiro cancro tive alguns acidentes, queimei uma mão, cortei um dedo, sem dar por isso. Não vou poder ter uma vida tão stressante como é a da cozinha Michelin. Quem sabe posso tirar outro curso. Gosto muito de história, preciso de saber a origem das coisas, já na cozinha era a mesma coisa com cada prato, especiaria ou qualquer outro detalhe. Ou talvez Direito, já que estou cada vez mais dentro das leis."

Para já, Priscilla vai estar a viver em casa de amigos. "Vivo da minha baixa médica e tenho uma prestação de inclusão social por causa da doença. Não dá para estar a alugar um quarto de 400 ou 500 euros ou uma casa. Foi a opção para ter dinheiro para me sustentar, comer, comprar medicamentos, transportes, quando preciso de ir às consultas, etc. Quando estiver mais estabilizada na doença e até psicologicamente, logo vejo o que faço. Estar sem poder trabalhar e sem ganhar o meu dinheiro é estranho para mim. Nunca vivi assim", admite.

"Não era só a doença, era o desgosto de estar sozinha"

Antónia espera-nos no lar do IPO de Lisboa. É ali que está mais uma vez, até conseguir partir para Cabo Verde. Em janeiro deste ano regressou à sua cidade, a Santiago. Ficou bem depois do transplante, mas em julho teve de regressar para fazer os exames e as consultas de rotina. Na mão já tem os relatórios dos médicos, que atestam que "está tudo bem", diz de forma firme. "Só falta a embaixada dar a guia para a passagem para casa." Em Santiago esperam-na os dois filhos, Adilson e Andreia, e os cinco netos que não viu durante os anos em Portugal. Tempo em que perdeu também o pai e a mãe sem se poder despedir. "O meu filho e a minha filha queriam vir, mas não havia dinheiro nem sítio para ficarem. Não temos família cá, só alguns vizinhos, e a casa dos vizinhos é só para desenrascar, não dá para ficar", desabafa. "No início eu andava triste, sofria. Não era só a doença, era o desgosto de estar sozinha, sem casa onde ficar. A embaixada ainda me arranjou um quarto numa pensão do Rato, mas só estive 15 dias. As enfermeiras e as médicas daqui deram-me muita coisa, mas não consegui ficar lá, não tinha quem me ajudasse e às vezes nem fazia comida. Então, a assistente social disse-me que me ia arranjar um quarto no lar e foi aqui que fiquei. Estou muito agradecida. Agora, quero voltar."

Antónia Moreno celebra todos anos dois aniversários, no dia 13 de junho e outro a 3 de novembro, porque foi esta a data que os pais puseram no papel. Neste dia, já gostava de estar em Cabo Verde. A sorrir diz várias vezes "sou forte, é Santo António que me ajuda". A Portugal só precisa de voltar em abril de 2019. E em Cabo Verde tem outra força, "tenho lá a família."

Cláudio deixou o IPO do Porto a 10 de agosto. O transplante em que o pai foi o seu dador a 100% correu bem e só tem de voltar uma ou duas vezes por semana às consultas. Enquanto tiver o quarto na Acreditar a mãe ou a mulher vão com ele para o ajudar. Espera que tudo continue assim. Até vencer esta batalha.

O Rock 'n' Law vai na décima edição e tornou-se um "evento que é um exemplo de solidariedade que marca a diferença. Sentimo-nos felizes por ajudar. E isso é o importante", diz ao DN Francisco Proença de Carvalho, da organização. À medida que os anos passam o Rock 'n' Law foi recebendo cada vez mais solicitações e pedidos de apoio. "Todos os anos escolhemos um tema e um dos critérios mais relevantes para a escolha dos candidatos é estar onde o Estado não está", explica o advogado. Quanto ao futuro, ainda nada está definido. "A ideia não nasceu com um prazo de validade, mas depois desta década há que falar com todas as sociedades de advogados que participam na organização para vermos como vamos continuar e que tipo de identidade se pode dar ao evento. Com tanta gente a querer participar começa a ser difícil regular o acesso ao palco. Neste ano há uma banda de juízes, mas também há procuradores e funcionários judiciais a quererem juntar-se a nós. Vamos ter de pensar se em vez de uma noite podemos avançar com a ideia de vários espetáculos pelo país. Vamos ver o que se decide, mas será difícil deixar morrer esta ideia."

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