Nina e os Velvet feitos retroativos
Das habituais homenagens de "carreira" prestadas pela organização dos Grammys, há duas que se destacam na presente edição: as que premeiam Nina Simone e os Velvet Underground. É verdade que Sly Stone, líder e fundador da banda funk Sly and The Family Stone merece uma "nota de rodapé", mas não chega para se aproximar dos cabeças-de-cartaz. Em matéria de efemérides, a distinção ao grupo de Lou Reed, John Cale & Cia. é imediatamente compreensível: passam agora 50 anos sobre a edição do álbum que os estreou, The Velvet Underground and Nico, com a cantora (e modelo e atriz) alemã a representar a "magistratura de influência" de Andy Warhol, um dos pais da pop art, que nunca se coibiu de meter o nariz noutras artes e, já agora, noutros negócios. Além de aparecer aos olhos do mundo como o guru do conjunto, algo que deve ter desagradado profundamente aos músicos mais destacados, Warhol ainda assinou a célebre - e polémica - capa com a banana e desempenhou funções de agente e empresário da banda, até ser despedido por Reed.
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Enquadramento à parte, o melhor que fica desse disco, num ano que viu surgir os Doors e Jimi Hendrix, em que os Beatles despacharam a concorrência com Sgt. Pepper"s Lonely Hearts Club Band, são as canções e a atmosfera. Basta pensarmos que, num mesmo registo, se juntavam I"m Waiting for the Man, Femme Fatale, Venus in Furs, All Tomorrow"s Parties, I"ll Be Your Mirror e European Son, só para citar as mais óbvias, e torna-se mais fácil perceber que, fora de um contexto nova--iorquino de constante transgressão, de colagem cultural, de sobressalto estético, o "resto do mundo" acabaria por precisar de mais tempo para assimilar todos os sinais enviados pelo quarteto, episodicamente reforçado com a esfinge de mármore que era Nico, dona de uma voz grave e sem grandes inflexões. Esta harmonia de conveniência começou a esboroar-se rapidamente: Nico seguiu o seu caminho, Warhol foi despachado, Cale partiu a seguir à gravação de White Light/White Heat que, aliás, pouco ou nada acrescentava ao seu antecessor. Foi preciso esperar pelos momentos seguintes, quando os Velvet já não eram mais do que um heterónimo de Reed, para reabrir as portas ao génio (Candy Says, Pale Blue Eyes, Sweet Jane, Rock & Roll). De qualquer forma, as sementes estavam lançadas e, em todas as décadas subsequentes, há um momento em que a herança dos Velvet Underground renasce, com influência menor.
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No ano em que os Velvet se apresentaram, Nina Simone gravou nada menos de três discos de estúdio, feito inédito e irrepetido. Era o tempo em que marcar presença já significava resistir e, a par de um talento transversal (soul, jazz, blues, folk, R&B, gospel, pop), a cantora nascida na Carolina do Norte era também uma porta-bandeira dos direitos cívicos dos negros. Travou mais batalhas nesse campo, social e político, do que no domínio artístico, onde o piano e a voz lhe garantiam a notoriedade que, ainda hoje, 14 anos depois da morte, lhe permitem partilhar a primeira fila das grandes cantoras. Apesar de nomeada em 15 (!) ocasiões, nunca venceu um Grammy. Até agora, o que prova que houve muita gente muito distraída durante muito tempo.