"Nenhuma nação foi mais sacrificada do que o Paquistão pelo terrorismo"

Entrevista a Chaudhry Mohammad Sarwar, ex-imigrante paquistanês no Reino Unido que foi o primeiro deputado muçulmano em Westminster mas em 2013 decidiu voltar ao país natal como governador do Punjab.
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Depois de ter sido durante muitos anos um imigrante paquistanês na Grã-Bretanha e um político de sucesso na Escócia decidiu regressar ao Paquistão. Consegue ver diferenças entre o Paquistão atual e o país a que regressou em 2013?
Passei 30 anos da minha vida na Escócia. Comecei como vereador em Glasgow em 1992, fui reeleito em 1995 e em 1997 tornei-me membro do Parlamento do Reino Unido.

Na primeira vitória de Tony Blair à frente dos trabalhistas?
Sim, e fui o primeiro muçulmano e a primeira pessoa não branca a fazê-lo na história da democracia britânica. Em 2013 voltei ao Paquistão após a minha reforma e foi-me dado o cargo de governador. Nessa altura havia quase 20 milhões de crianças que não iam à escola no Paquistão. O meu objetivo e a minha paixão foi perceber como é que conseguiríamos fazer estas crianças voltarem à escola. Organizei uma conferência internacional em que esteve presente o ex-primeiro-ministro do Reino Unido, Gordon Brown, e também parcerias globais, além de muitas instituições das Nações Unidas. Nessa conferência foram atribuídos 500 milhões de dólares para a educação dessas crianças. A escolaridade aumentou e as Nações Unidas reconheceram isso. Mas, infelizmente, o anterior governo baixou o compromisso com a educação e eu demiti-me do partido - Liga Muçulmana do Paquistão - em 2014. Estou agora no PTI [Pakistan Tehreek-e-Insaf].

Nessa altura o PTI era ainda um pequeno partido?
Nessa altura, a Liga Muçulmana era muito forte e muitos amigos meus ficaram espantados e perguntavam-me: "O quê? Vais deixar um partido que é invencível e vais juntar-te a um que vai ser derrotado?" Eu respondia-lhes que era uma questão de princípio, o PTI estava a lutar pela mudança e eu queria fazer parte dessa mudança no Paquistão.

E as coisas estão a mudar agora?
Sim, decididamente estão a mudar. As mudanças estão a acontecer a nível das relações com a comunidade internacional - melhorámos as nossas relações com o Afeganistão, o nosso primeiro-ministro Imran Kahn falou com o presidente Donald Trump dos Estados Unidos e instou-o a recomeçar as negociações com os talibãs. O Paquistão está a facilitar essas negociações porque acreditamos que se houver paz no Afeganistão o povo do Paquistão será o mais beneficiado com isso.

Mas embora as coisas estejam melhores na fronteira ocidental, na fronteira oriental não estão muito bem, com a Índia, e uma vez mais por causa de Caxemira...
Nós queremos ter boas relações com os nossos vizinhos, porque acreditamos que se quisermos melhorar as coisas, erradicar a pobreza, para o nosso povo, então temos de resolver as nossas diferenças através da negociação. Quando o primeiro-ministro tomou posse, a primeira coisa que fez foi oferecer a nossa amizade a Narendra Modi e pediu-lhe para darmos as mãos, negociarmos, resolvermos as nossas diferenças, pois assim podemos fazer melhor pela nossa relação e pelos nossos povos. Infelizmente, a resposta de Narendra Modi foi negativa. O nosso primeiro-ministro disse-lhe: "Se vocês derem um passo na direção da paz, nós daremos dois, porque o futuro dos nossos dois países está na paz." Mas esta mudança de posição está a acontecer porque Narendra Modi queria ganhar as eleições novamente e queria uma vitória retumbante e, para isso, explorou os sentimentos dos hindus; depois das eleições as relações entre os nossos países normalizar-se-iam mas, infelizmente, Narendra Modi, unilateralmente, sem discutir, sem negociar com o povo de Caxemira mudou o estatuto de Caxemira. Nas resoluções das Nações Unidas, com as quais o governo da Índia concordou, ficou estabelecido que haveria um plebiscito e o futuro da região deveria ser decidido pelo povo de Caxemira. Infelizmente, ao longo de 110 dias foi imposto o recolher obrigatório e é possível ver que depois de um dia de recolher obrigatório a vida tornou-se miserável, como é que aquelas pessoas conseguem sobreviver 110 dias? Eles não têm comunicações para lá da fronteira, estão totalmente bloqueadas.

Pensa que sem um acordo negociado sobre Caxemira, relações normais entre o Paquistão e a Índia serão impossíveis?
Primeiro temos de ter confiança negocial. Antes disto, houve tensões em 2002, mas ambos os países falaram um com o outro e a comunidade internacional desempenhou um papel - o Reino Unido e os Estados Unidos - para aliviar as tensões, contê-las e levar os países a condições negociais. Portanto, a comunidade internacional pode desempenhar um papel. Agora estávamos prontos para conversar, mas infelizmente eles mudaram o estatuto de Caxemira, o que nós pensamos que é ilegal, imoral e contra as resoluções das Nações Unidas.

Portanto, o diálogo é agora mais difícil?
Sim, a não ser que eles alterem a sua decisão, levantem o recolher obrigatório em Caxemira. Eu apelo à comunidade internacional para que sinta a dor e o sofrimento do povo de Caxemira. Há jovens de 15 e 16 anos a serem molestados, presos, há tortura, espancamentos, mulheres a serem violadas... Até um representante dos direitos humanos da ONU chorou com os relatos, porque é uma tristeza. Estão a ser cometidos crimes contra a humanidade.

Como é que reage às acusações feitas pelos indianos de que o Paquistão apoia tradicionalmente movimentos terroristas em Caxemira e também na Índia?
Isso é uma coisa em que estamos num jogo de culpas. Nós apelámos à comunidade internacional, apelámos às Nações Unidas para que a comunidade internacional nomeie, destaque observadores na fronteira para que vejam, observem quem é que está a mandar terroristas para o território do outro e as autoridades da Índia recusam. Perguntámos-lhes,se eles acreditam que há pessoas do Paquistão a interferir na questão de Caxemira, porque é que não permitem a presença dos observadores internacionais? Porque é que não permitem os senadores e os congressistas americanos, os parlamentares britânicos, os parlamentares europeus? Eles não deixem ninguém entrar em Jammu. Nós não temos nada a esconder. Uma coisa que me deixa realmente irado é que morreram 70 mil pessoas em Jammu e Caxemira e eu não tenho conhecimento de que eles tenham trazido um único corpo para casa. No Paquistão, no Punjab, se olharmos para a cor da pele das pessoas reconhecemos quem é de Caxemira, quem é indiano, paquistanês, hindu, sikh e se alguém é morto a família gosta de ter o seu nome, os nomes dos pais, o cartão de identidade... e eles não trouxeram uma única pessoa à comunicação social, à comunidade internacional, que eles soubessem que tinha entrado em Caxemira vindo do Paquistão e tomado parte em algum ato terrorista. Nós pedimos-lhes provas para prendermos essas pessoas, para as castigarmos, porque não achamos que se deva interferir nos assuntos de outro país. No caso de [Kulbhushan] Jadhav, o Tribunal Internacional aceitou o nosso ponto de vista de que ele estava a lutar pela Índia, que era a Índia que estava a patrocinar as suas ações no Paquistão.

No que respeita ao terrorismo dentro do Paquistão, os últimos anos têm sido terríveis, com muitos ataques. Está sob controlo agora?
As duas últimas décadas têm sido muito difíceis, muito desafiantes para o Paquistão porque 50 mil pessoas perderam a vida no país, vítimas de ataques terroristas. Os nossos lugares sagrados foram atacados, os nossos templos foram atacados, as nossas mesquitas foram atacadas... Nós somos as maiores vítimas de terrorismo no mundo. Nenhuma nação foi mais sacrificada do que o Paquistão, nenhuma fez mais sacrifícios a lutar contra o terrorismo. Nós somos o Estado que está na linha da frente na luta contra o terrorismo no Paquistão.

Em grande medida terrorismo jihadista interno.
Sim, terrorismo interno, mas podemos ficar verdadeiramente orgulhosos por nos últimos quatro ou cinco anos toda a missão em conjunto - o nosso exército, a nossa polícia, as nossas organizações políticas, as nossas organizações religiosas - se ter unido para combater o terrorismo. Preparámos eleições, estabelecemos a estratégia e derrotámos o terrorismo no Paquistão. Agora até o aviso de Portugal mudou: o Paquistão é um país seguro para visitar, até as Nações Unidas concordam. Agora, as pessoas podem visitar-nos sem medo. Nós conseguimos restaurar a segurança interna no Paquistão. Mas sofremos muito. Tal como já disse perdemos mais 50 mil vidas e temos mais de quatro milhões de refugiados no nosso país.

A maioria desses refugiados são afegãos?
Sim. O que nós queremos para nós e para os nossos vizinhos é a paz. Temos sofrido muito por causa deste estado de coisas.

Este decréscimo do terrorismo está a criar uma nova prosperidade?
Agora que o terrorismo está sob controlo posso dizer que, só em Lahore, nos últimos dois ou três meses, a lotação dos nossos hotéis está esgotada. As pessoas vêm de todo o mundo. Estamos a celebrar os 550 anos de Guru Nanak e através do Kartarpur Corridor há milhares de sikhs que estão a vir; tivemos a equipa de críquete do Sri Lanka em Lahore; a equipa feminina do Bangladesh disputou os seus jogos em Lahore; a equipa de hóquei de Omã esteve lá; e houve um desfile de moda internacional, que acontece anualmente num dos países participantes e, desta vez, foi no Paquistão.

Mas agora precisam também de atrair investimento?
O investimento também está a entrar. Nos últimos seis meses tivemos a taxa de investimento mais alta, porque as pessoas se sentem seguras no país.

É maioritariamente investimento chinês ou também de outras fontes?
É um mito de que só os chineses estão a investir, mas os outros estão a investir também. Os chineses estão a investir muito, mas há investimento que vem de todo o mundo - Estados Unidos, Reino Unido, etc. -, eu encontro-me com delegados todos os dias, vindos do mundo inteiro. Uns para investirem em empresas, outros em tecnologias da informação, outros nas nossas universidades - tivemos uma conferência internacional de estudantes em Lahore em que participaram estudantes de 35 países, porque as pessoas sentem-se seguras agora.

Pensa que a história passada de Imran Kahn, tendo sido capitão da equipa nacional de críquete e uma figura muito popular, ajuda a criar esta ideia de um Paquistão moderno? A personalidade do primeiro-ministro é essencial neste processo?
Sim. Ele ganhou a Taça do Mundo quando era capitão da equipa de críquete nacional. Ele quer a mudança no Paquistão, quer uma sociedade liberal no país, quer um Estado de Direito para os ricos e para os pobres, quer erradicar a corrupção da nossa sociedade que já causou muitos danos na nossa economia e na nossa prosperidade e tem a visão de ter boas relações com os nossos vizinhos. Quando o Paquistão se tornou independente, o nosso fundador, Muhammad Ali Jinnah disse uma vez que o Paquistão tinha sido constituído, toda a gente que vivia no país era paquistanesa, eram todos cidadãos do Paquistão e todos iguais. Mostrámos ao mundo que a tensão com a Índia, embora fosse tradicional a violação da linha de controlo, não nos impediu de termos sucesso na luta contra o fundamentalismo. Temos passado a mensagem da tolerância para com as pessoas, a comunidade. Acreditamos que tem de haver mais tolerância, aceitação em relação ao outro. Há diálogo inter-religioso e harmonia inter-religiosa no Paquistão. Todos trabalham em conjunto e toda a gente e todas as comunidades sentem o Paquistão como o seu país. Acho que percorremos um longo caminho sob a liderança de Imran Kahn.

Estive no Paquistão há uns anos, estive em Carachi e visitei a Catedral de St. Patrick. O arcebispo, na altura, era um paquistanês com um apelido português, Pereira, provavelmente de origem goesa. Como é que está atualmente a situação da minoria cristã no Paquistão? São quase dois milhões de pessoas.
Eu próprio fiz parte de uma minoria, no Reino Unido. No meu círculo eleitoral, Glasgow, havia 90% de cristãos brancos e 10% de outras religiões. Portanto, eu sei quais são as questões das minorias, sei o que as pessoas sofrem - discriminação, intolerância -, por isso queremos dar às pessoas oportunidades iguais. Nós temos minorias em todos os quadrantes da vida do país. As universidades têm quotas para as minorias. Assim, demos-lhes algumas iniciativas positivas, como por exemplo na educação. Sinceramente, penso que se sentem seguras com o nosso governo.

Há uma melhoria da situação de cristãos, hindus e sikhs?
Sim. A coisa boa é que os líderes religiosos de todas as comunidades religiosas estão a trabalhar em conjunto.

Há também tradicionais críticas ao Paquistão de que, embora sendo uma democracia, o poder do exército é exageradamente forte. É possível conseguir um equilíbrio entre esta influência militar tradicional e o poder dos civis?
Toda a gente sabe que durante metade do tempo pós-independência o Paquistão foi governado pelo exército, numa ditadura, e a outra metade foi em regime democrático. Mas entre 2008 e 2013 foi a primeira vez na história da democracia do Paquistão que um governo cumpriu integralmente o seu mandato de cinco anos. Depois, entre 2013 e 2018, houve muita desconfiança, muitas questões, muitos conflitos, mas apesar de tudo a Liga Muçulmana completou os seus cinco anos de mandato. E, agora, acredito que o atual governo irá completar o seu mandato também.

Em relação ao legado de Muhammad Ali Jinnah, o fundador, de que forma o Paquistão reflete o sonho deste homem?
Antes das eleições tivemos um enorme comício público em Lahore. Estiveram lá várias pessoas, incluindo eu e o primeiro-ministro do Paquistão, e prometemos à nação que, se nos dessem a oportunidade de governar o país, iríamos cumprir os sonhos de Muhammad Ali Jinnah e a visão de Muhammad Iqbal, que é o nosso poeta nacional. Nós queremos que os sonhos dos nossos fundadores sejam concretizados no Paquistão, que haja um Estado de direito. Tínhamos um slogan que dizia que não queremos dois países, mas um só Paquistão em que ricos e pobres, poderosos e fracos, tenham os mesmos direitos e se tornem cidadãos iguais do Paquistão. E esta é a marca do governo que assumimos, segundo os ensinamentos do nosso poeta nacional.

Portugal, sendo um país pequeno, tem algumas oportunidades em termos de negócios e investimento no Paquistão?
Portugal é um país pequeno, mas belo. As pessoas são muito amigáveis. Esta é a minha primeira visita, mas a hospitalidade e a atenção que tenho recebido das pessoas portuguesas fez-me compreender porque é que pessoas de todo o mundo vêm cá como turistas. A comida é excelente e o tempo é muito melhor do que o escocês. Toda a minha vida disse às pessoas que uma coisa que não podiam perder era o tempo escocês [risos]. E há enormes oportunidades entre os dois países, estou contente por termos agora um embaixador permanente do Paquistão cá e por termos um embaixador permanente do Paquistão em Portugal. Conheci o embaixador português em Lahore, que é muito boa pessoa e está determinado a aumentar o comércio entre os nossos dois países e o nosso embaixador está igualmente determinado. Assim, sob a liderança deles, acreditamos que vai haver um maior programa de trocas entre os nossos dois países. Já estamos a pensar em instituir uma colaboração entre as universidades em Portugal e as do Punjab. Muita gente tem visitado o nosso país e tivemos lá uma delegação comercial de Portugal. E há um potencial enorme de investimento para as empresas portuguesas no Paquistão em tecnologias da informação e na agricultura. Podemos aprender muito convosco sobre como promover o turismo, porque temos a visão de aumentar o turismo no Paquistão. Eu estou a forçar o Punjab a promover o turismo no Paquistão, por isso é que estou a promover as celebrações dos 550 anos de Guru Nanak. Vamos promover também o património budista no país, porque ele é imenso no Paquistão. Portanto, estamos a trabalhar muito para promover o turismo no nosso país. Creio que há muitas coisas em que os nossos dois países estão a trabalhar afincadamente para promover a paz, a prosperidade e um melhor entendimento entre as nações do mundo.

Foi membro do parlamento em Westminster e agora é governador do Punjab, com 110 milhões de pessoas. Qual a diferença entre ser um político no Reino Unido e no Paquistão?
Gordon Brown era um grande amigo meu. Encontrei-o na conferência sobre educação e ele disse-me: "Eu fui primeiro-ministro de 55 milhões de pessoas e você é governador do Punjab com 110 milhões de pessoas!"

Mas não é só o número de pessoas, a forma de fazer política também é diferente...
Há uma coisa que eu digo às pessoas: "Eu fui um homem de negócios, por isso sei o que é ser-se um homem de negócios, mas quanto à política..." A política é uma coisa muito brutal. Não sabemos quem é o nosso amigo e quem é o nosso inimigo. A política não é diferente no Paquistão e no Reino Unido, é um jogo implacável. Com 72 anos de independência e depois de uma ditadura penso que as instituições democráticas estão a florescer no Paquistão. As pessoas querem a continuidade das instituições democráticas no país, por isso acredito que estamos a avançar na direção certa. Estamos a avançar para mais entendimento entre o nosso povo, entre as nossas comunidades, e acreditamos que, sob a liderança de Imran Kahn, estamos a construir um país em que existirá o Estado de direito, em que as pessoas serão tratadas com igualdade independentemente da sua cor, cultura, credo ou religião. Queremos lutar contra a pobreza no Paquistão, queremos lutar contra o desemprego, queremos lutar contra o preconceito, contra a discriminação no país. Nós somos um país liberal e queremos ter boas relações com os nossos vizinhos, com a Europa, com todos os países.

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