As duas primeiras novelas do novo livro de Teolinda Gersão versam sobre Freud e Thomas Mann, parecendo muitas vezes que a escritora aproveitou a oportunidade para acertar contas com ambos, antes de chegar à terceira novela, sobre a mãe do autor. Ela nega que assim seja e afirma: "Admiro e respeito muitíssimo Freud e Thomas Mann, e não tenho contas a ajustar com nenhum deles - nem, aliás, com ninguém. O papel do escritor não pode ser esse, e não é de certeza o meu.".Quanto ao possível pendor feminista de O Regresso de Júlia Mann a Paraty, considera que não existe e justifica: "Embora centrado numa figura de mulher, o livro não está ao serviço de nenhuma causa." Quanto ao estado da Cultura em Portugal, não hesita em lamentar que "infelizmente, a cultura é sempre o parente pobre e relegada para segundo plano"..Freud e Thomas Mann pensam-se um ao outro. Existiu uma situação real que deu origem a este modo de os ficcionar?.Freud e Thomas Mann tinham-se reciprocamente em grande consideração, leram os livros um do outro, trocaram cartas. Tiveram um único encontro presencial, mas acompanharam-se de algum modo à distância, ao longo da vida. Por isso me seduziu a ideia de os fazer dialogar, e ver Thomas Mann pelos olhos de Freud, e Freud pelos de Thomas Mann..Citaçãocitacao"Freud não esconde nada. No diálogo imaginário com Thomas Mann, reconhece que não foi suficientemente interventivo perante a ameaça nazi.".Tanto Freud como Mann são pessoas reais. Respeitou as biografias ou deu-lhes o caminho que pretendia para um objetivo literário?.Respeitei rigorosamente as suas biografias, assim como a de Júlia Mann, que foi, tal como eles, uma pessoa real. Todos os factos que refiro no livro são verdadeiros, e estão documentados..Em ambos a certeza da morte para breve de Freud leva a estes pensamentos que põe em cada um deles e que fazem o livro. Só a aproximação da morte de Freud permite libertar a intimidade daquilo que são e escondem?.Freud não confessa nada, nem esconde nada. No diálogo imaginário com Thomas Mann, reconhece que não foi suficientemente interventivo perante a ameaça nazi, e acreditou na ilusão de que a psicanálise poderia ser praticada em qualquer regime político. Thomas Mann sempre escondeu a sua homossexualidade, na altura aliás terrivelmente ostracizada e punida pela sociedade - o próprio Freud a considerou uma perversão. Felizmente a mentalidade mudou e a homossexualidade é hoje aceite e normal. No entanto quantos homossexuais se suicidaram, foram presos, maltratados, literalmente destruídos! Pensemos por exemplo no que aconteceu a Oscar Wilde ou a Alan Turing, que criou o computador... O silêncio de Thomas Mann é em grande medida compreensível. Mas, revelando a sua homossexualidade, embora postumamente, ele deu testemunho do sofrimento que enfrentou, o que me parece um gesto positivo e corajoso. No entanto o que mais o atormentou não foi a homossexualidade, considerava a rivalidade/inimizade com o seu irmão Heinrich o problema central da sua vida. Além de vários outros... O lado mais sombrio da sua personalidade surge por exemplo em cartas e alguns dos seus diários, mesmo que tenha destruído vários. E há uma pulsão confessional que transparece nos seus livros e na sua admiração por Freud. É plausível que tivesse desejado conversar com ele, até porque o considerava um intelectual à sua altura, e com quem sentia afinidades profundas..Júlia Mann foi retocada para dar o final que desejava? Ou apenas procurou nela o retrato de que necessitava?.Como escritora eu não necessitava de nada, a não ser da realidade. A figura de Júlia é o mais possível fiel ao que deixou nos seus escritos e ao que sobre ela investiguei noutras fontes. Nada foi "retocado"..Citaçãocitacao"Era o dote da mulher que determinava o seu casamento. Era, de algum modo, 'vendida' e 'comprada'. Mas os homens também eram infelizes: 'vendiam-se' a troco de um dote tentador.".Júlia só perto do seu fim é que se apercebe que "fora uma má mãe" e hesita entre a qual dos filhos, Heinrich e Thomas, deu mais amor. Essa é um julgamento frequente ou necessário ao livro?.As mães têm tendência a culpar-se pela infelicidade dos filhos, mas na verdade não são culpadas. Não há mães perfeitas, pais perfeitos, nem filhos perfeitos. Júlia amou o melhor que pôde todos os seus filhos, e deu-lhes o melhor de si. Não foi responsável por nada do que lhes aconteceu, nem estava ao seu alcance alterar as suas vidas.."Por alguma razão tivera dois filhos escritores." Acredita no legado genético, ou Júlia precisa de legitimação para as suas frustrações literárias?.Foi através de Júlia que a arte e o talento criativo entraram na família Mann, como aliás o seu filho Thomas reconhece. Até aí os Mann eram comerciantes e empresários, e o marido de Júlia não podia desaprovar mais as vocações artísticas. Mas Júlia sempre apoiou a vocação dos filhos. Não tinha ela própria qualquer frustração literária, até porque nunca desejou ser escritora, embora tivesse uma notável capacidade de se exprimir e uma memória prodigiosa, atenta a todos os pormenores. Desejou ser artista, sim, mas como cantora e tinha uma bela voz de contralto..As críticas aos casamentos sem aceitação por parte da mulher estão bem vincadas nas narrativas. Se este é o melhor retrato para explicar a infelicidade emocional de muitas mulheres ao longo da história, em que situação ficam os homens?.Grosso modo, só a partir de meados do século XX, quando as mulheres começaram a ser economicamente independentes, tiveram liberdade de escolher as suas vidas, e com quem queriam - ou não - partilhá-las. Até aí em grande medida era o dote da mulher que determinava o seu casamento. Era, de algum modo, "vendida" e "comprada". Mas os homens também eram infelizes: "vendiam-se" a troco de um dote tentador. Nem do lado dos homens nem no das mulheres o amor entrava portanto no contrato. Claro que, apesar de tudo, os homens tinham privilégios e possibilidades negadas às mulheres para contornar a infelicidade - as relações extraconjugais, no caso deles, e só no caso deles, eram socialmente aceites, por vezes mesmo apoiadas e admiradas, como sinal de estatuto social e riqueza..Júlia nunca pôde ser a mulher que ambicionava. Essa impossibilidade valeu-lhe ser escolhida para o título deste livro?.Depois da morte do marido, tinha então 39 anos, Júlia viveu em Munique num bairro boémio, e o salão da sua casa, onde ela tocava piano e cantava, era frequentado por muitos artistas. Durante algum tempo foi a mulher livre que ambicionava ser. Mas o que me levou a investigar sobre ela foi a curiosidade de saber quem tinha sido realmente aquela mulher, mãe de grandes escritores e matriarca da família Mann. Não sabia quem iria encontrar, mas estava interessada em descobri-la, tal como era. Encontrei uma mulher extraordinária, cuja vida ficou em grande parte na sombra, e merece ser conhecida e contada..Não teve receio de que a terceira novela transformasse o livro num manifesto feminista?.De modo nenhum. Claro que existe, sobretudo desde o século XIX, um movimento global de emancipação da mulher, que implica uma enorme mudança das mentalidades. Também a vida e o pensamento dos homens têm sido transformados por essa mudança. Embora ainda haja muito caminho a fazer, está em curso uma evolução, ou, se quisermos, uma revolução social, o que se reflecte em todos os aspectos do mundo contemporâneo, e, inevitavelmente, também na arte e na literatura. Mas nenhum dos meus livros pode ser interpretado como um manifesto feminista, e O Regresso de Júlia Mann a Paraty também não. Foi pensado como um todo, com uma coerência interna. A terceira novela é a história de uma mulher invulgar, e de uma família também invulgar. Nas duas novelas iniciais, através do diálogo de duas figuras maiores da cultura europeia, encontramos o mundo interior de Freud, de Thomas, e, indirectamente, o de Heinrich Mann; e também o enquadramento intelectual, artístico, histórico e sócio-político de uma época extremamente conturbada. Mas, embora centrado numa figura de mulher, o livro não está ao serviço de nenhuma causa. Os manifestos têm uma forma própria, e finalidades específicas concretas. Mas só a literatura consegue criar personagens imaginárias, ou trazer de volta personagens reais, através das suas vozes e das suas vidas. Foi esse o meu objectivo..Thomas Mann é um autor consagrado que encerra muitas encruzilhadas morais. Este tempo pós MeToo era o ideal para o desnudar?.Todo o ser humano é complexo e contraditório. O escritor descreve e conta, e a sua narrativa, embora ficcional, é verdadeira. É o que faço em todos os meus livros, e este não é excepção. Não pretendi, de forma nenhuma, desnudar Thomas Mann, julgá-lo, ou emitir juízos morais sobre ele..Como nasce este livro? Do acaso, de uma investigação, ou de um propósito?.Este livro nasceu muitas décadas antes de eu saber que iria alguma vez escrevê-lo. Comecei a ler Thomas Mann quando ainda era estudante e continuei sempre interessada na sua obra, e também na do seu irmão Heinrich. Como germanista, conheço bem a História política, social e cultural da Alemanha, além da sua literatura, e interessei-me desde cedo pela via filosófica e psicanalítica - há muitas pontes entre ambas - para a interpretação das obras literárias. Era um caminho muito mais sedutor do que as alternativas que então nos ofereciam: a sociológica, fortemente marxista, que achei redutora, e a estruturalista e linguística, que não me interessou. Assim, durante décadas estudei Filosofia e li a obra de Freud e também a de Jung, sem me "filiar" em nenhum deles, mas aprendendo muito com ambos, que foram colaboradores durante muito tempo, até Freud romper com Jung. Digamos que a minha "bagagem" na área da germanística era grande, quando, recentemente, tive curiosidade de saber mais sobre Júlia, li o seu livro Ich spreche so gern mit meinen Kindern (Gosto tanto de falar com os meus filhos), o livro de Viktor Mann sobre a história da família, Wir waren fünf (Éramos cinco), as Memórias não escritas de Katia Mann, e ainda outra bibliografia - a que existe sobre os Mann é imensa. Mas centrei-me sobretudo nos escritos da própria Júlia..A estrutura deste livro é muito diferente do que lhe é habitual. Como chegou a este registo?.Os meus livros são muito diferentes uns dos outros, embora haja uma grande coerência entre eles. Mas cada um escolhe a forma certa de ser contado. Quando começo ainda não sei qual será, mas o desconhecido estimula-me a continuar. É à medida que avanço que encontro o registo exacto. Desta vez só falei de Júlia depois de atravessar o mundo interior de Freud e de Thomas Mann, o que implicou uma quantidade enorme de leituras, durante muitos anos. É imediatamente óbvio para o leitor que é ficção o que Freud pensaria de Thomas Mann, e vice-versa. Não sei, nem ninguém sabe, o que estaria nas suas cabeças, respetivamente em dezembro de 1938 e em dezembro de 1930. Mas, conhecendo a obra de cada um, e as circunstâncias sócio-políticas e culturais em que viveram, o diálogo que imagino é plausível e suponho que faz todo o sentido. O leitor também percebe de imediato que o regresso de Júlia a Paraty é ficção, mesmo que à partida não saiba que ela nunca regressou. Mas a história contada é real, todos os factos referidos aconteceram. E o seu regresso também faz sentido, uma vez que ela escreveu na epígrafe do seu único livro, publicado postumamente: "Onde o sol pela primeira vez brilhou e as estrelas do céu pela primeira vez se iluminaram para ti (...) é a tua pátria. (...) Onde os primeiros olhos humanos se inclinaram com amor sobre o teu berço, onde a tua mãe te trouxe alegremente no seu colo (...), é a tua pátria". A citação, aliás de um autor menor, é usada por Júlia no seu próprio contexto: escolhe a mátria, como diria Natália Correia, a terra da mãe, e não a pátria, em alemão Vaterland, literalmente terra do pai. A figura materna é a mãe real, e também Ana, a escrava negra, que nunca a abandonou - não lhe foi tirada pela morte -, e ousou desobedecer ao seu amo e expor-se à sua fúria para dizer à pequena Júlia que a amava e não queria deixá-la. Esse laço afectivo nunca se quebrou, Ana ficaria para sempre no coração de Júlia..Thomas Mann afirma: "A arte é falsidade e mentira." O que existe aqui de autobiográfico?.Em relação a Thomas Mann, a frase é sem dúvida autobiográfica. Ele só se sentia vivo na obra e na escrita, os universos imaginários usurpavam o lugar da realidade, como se a própria vida lhe escapasse..A obra de Mann sobreviveu melhor que a de Freud?.Não sei responder a essa pergunta. O que se verifica é que ambas sobreviveram e sobreviverão. São dois vultos incontornáveis do século XX..Wagner não escapa ao questionamento. Era impossível evitar quando para Júlia a música era importante, e inspiradora para Thomas Mann?.A música de Wagner tem aspetos admiráveis, mas infelizmente a mitologia nórdica das suas óperas foi abusivamente explorada pela propaganda nazi. Daí que tenha tido adeptos fervorosos e também detractores. Júlia era musicalmente muito dotada, mas Wagner não a cativou. Thomas Mann tinha uma posição ambivalente em relação a ele. Um dos seus ensaios tem o título Pró e contra Wagner..Qual o romance de Thomas Mann levaria consigo?.Entre os romances, Os Budenbrooks. Mas não deixaria de levar também muitos dos seus contos, que são obras-primas..Como vê o estado da cultura - e da literatura - em Portugal nestes tempos de pandemia?.Entre nós infelizmente a cultura é sempre o parente pobre, relegada para segundo plano. Claro que a pandemia veio agravar essa situação consideravelmente. Nunca entendi por exemplo por que razão jornais e revistas continuaram a circular livremente nas bancas, como se fossem imunes a qualquer vírus, mas as livrarias nem ao postigo foram autorizadas a vendê-los. Serão assim tão perigosos?.Teolinda Gersão.Porto Editora.142 páginas.A enciclopédia de Lewis Gaddis sobre os tempos da Guerra Fria .John Lewis Gaddis começa ensaio A Guerra Fria com o pressuposto de que poucos são os contemporâneos que sabem o que aconteceu não ainda há muito tempo. "Quando falo de Estaline e Truman, ou mesmo de Reagan e Gorbachev, bem podia esta a falar de Napoleão, Júlio César ou Alexandre Magno", diz..Ao referir o tema do livro vai mais longe por considerar que se as decisões tomadas na altura fossem outras os seus alunos poderiam nem ter nascido, mas tem a consolação de que quem se inscreve na sua disciplina fica fascinado ao ter conhecimento da grande rivalidade que dominou a última metade do século XX..A obra não é para iniciados tal é a proposta com que preenche mais de trezentas páginas, bem como a extensa descrição de eventos que quase criaram o caos planetário, mas acabaram por evitar a possibilidade de ter existido uma guerra nuclear, mas pode ser lida por todo o género de leitores devido ao domínio do autor sobre este período tão complexo da História da humanidade..Curiiosamente, Gaddis recorda o efeito do romance de Orwell, 1984, para introduzir o leitor na sua narrativa e comparar os prognósticos literários do romancista como o que existiu de semelhante na realidade: governos totalitários e bastantes dirigentes com apetites ditatoriais no pós-Segunda Guerra Mundial, que criaram o cenário de uma Guerra Fria que só terminou décadas depois. O livro nada tem de ficção e expõe um conflito que modelou o mundo até há muito pouco tempo..John Lewis Gaddis.Edições 70.341 páginas