Nayola. A beleza angolana de José Miguel Ribeiro e José Eduardo Agualusa

José Eduardo Agualusa e Mia Couto escreveram juntos A Caixa Preta, peça a partir de uma ressaca angolana da guerra civil. Esse foi o ponto de partida para uma memória catártica em forma de animação. Nayola, o filme de José Miguel Ribeiro, que por entre máscaras e viagens no tempo, se transforma noutra coisa graças ao argumento de Virgílio Almeida. Três gerações de mulheres da mesma família a atravessar uma Angola de ontem, hoje e amanhã. Um filme para adultos com uma genuína paixão simbólica e mágica que consegue captar a essência de um povo..Em plena Cinemateca Júnior, em Lisboa, falámos com o escritor angolano e o realizador, ainda de sorriso estampado após antestreias com reações extremamente positivas em Angola e em Portugal..Fica a ideia de que este é sobretudo um filme para os angolanos... José Eduardo Agualusa (JEA)- Devo dizer que o vi pela primeira vez através do ecrã de um computador e estava acompanhado pelos meus filhos mais velhos. A Vera, que tem 17 anos, não sabia bem o que se tratava e ficou espantada a exclamar "é um filme angolano! É um filme angolano! Nunca tinha visto um filme angolano". A verdade é que no fim chorámos os três...E fiquei também com essa sensação: de facto, é um filme angolano. A história, as cores, os atores, a banda-sonora... tudo é angolano, bem como a própria forma de como as personagens se movem! Em regra geral, é isso que os angolanos sentem ao ver Nayola. José Miguel Ribeiro (JMR)- Eu tive pessoas a dizerem-me que o filme fazia parte da História do país e que representa o povo. Nesse sentido, penso que é um filme que toca as pessoas. JEA- As pessoas sentem-se representadas. A originalidade deste projeto do Zé foi ter ido para Angola não à procura daquilo que pode haver de Portugal mas sim de uma história angolana. Isso é algo completamente inédito, quer no cinema, quer na literatura portuguesa e aí há muitos livros em África mas quase sempre com a voz dos portugueses. Os angolanos nunca tinham voz própria mas neste filme é ainda mais do que isso - nem há preocupação sequer de ter esse olhar português. O olhar de Nayola é angolano. JMR - Para mim o desafio era fazer um filme novo sobre um tema novo. Afastei-me deliberadamente do universo português, mais do que em Viagem a Cabo Verde, que era essencialmente a interagir com os cabo-verdianos. Quis aproximar-me de outras coisas, de uma outra realidade, mas não o fiz sozinho, quanto mais não seja porque o cinema é uma arte colaborativa. No fim, este não é um filme meu, é sim destas pessoas todas. Deixei entrar os músicos angolanos, os atores, a peça do José e do Mia, o realizador Jorge António a dar-me indicações, etc. Estava muito bem rodeado para não cair no que não queria: um filme neocolonialista, que seria muito fácil: basta não pensar. Tentei limpar-me da minha visão portuguesa e estar muito atento a outras formas de ver..Será impressão minha mas há também um lado muito de partir para a luta, não há? Um espírito revolucionário... JEA- Sim, o papel da menina Yara não estava na nossa peça de forma tão explícita. Sinceramente, acho que foi muito bom o filme ter ido por aí que foi dar corpo a algo que existe com força na sociedade angolana: esta juventude rebelde e contestatária, inclusive as meninas feministas que, do meu ponto de vista, é talvez o movimento mais importante que surgiu depois da independência..Por outro lado, é um filme feito com vozes masculinas... JEA- Gosto de insistir no seguinte: um escritor é uma entidade múltipla: não é homem nem mulher. Se um escritor não conseguir ser tudo não é um escritor e, com certeza, a mesma coisa para um realizador ou qualquer artista. Isso é algo que não se põe no nosso ofício. JMR - E eu já trazia esse olhar feminino do Agualusa e do Mia Couto mas ainda sublinhámos mais isso. Não foi feito só comigo e com o argumentista Virgílio, mas também com a Catarina Gil, a minha assistente de realização, a Johanna Bessiere, que nos ajudou no layout do animatic 3D; a Gaelle que fez todos os cenários do quarto da Yara, etc. Mas hoje todos nós somos feministas, se queremos mudar, temos de ser! O feminismo é uma escolha que se impõe também aos homens..Na passagem do texto teatral para o guião de cinema sobra uma sensação literal de viagem. Isso vai surpreender muita gente... JEA - É a tal coisa de terem pegado na Yara para além da existência do diário. A Yara ganha essa itinerância através da guerra. Ao mesmo tempo, é uma história de amor. As adaptações devem subverter o original o mais possível. Quando não subvertem, não estão bem feitas. Nayola é sobretudo um filme de ausências, em especial da ausência do pai desaparecido, homem sem rosto. JMR - A peça tinha essa dimensão humana da resistência das mulheres, do facto de terem segredos e e de se amarem. Eu gostei muito dessas personagens e quisemos manter isso mas ampliando a dimensão e criando um realismo animista ao desenvolver o lado da viagem. Por outro lado, queria mostrar a guerra e horror mas para o fazer também há que mostrar o outro lado: a beleza e a luz. Era, então, importante que fosse também uma viagem do belo. Nesse contraste tentei mostrar lados diferentes da experiência humana, não quis reduzir as coisas apenas a um ponto de vista. Se mostro o maravilhoso, quis também ir atrás da energia das cidades com esse comprometimento dos jovens. Nessas questões dos contrastes lembro-me sempre do Terrence Malick e do seu A Barreira Invisível, que é um filme sobre a guerra mas também sobre a beleza. No meio da guerra encontramos esses contrastes e isso é que é o absurdo. Quem está na batalha sabe que pode morrer a qualquer momento mas depois temos a vida ao nosso lado...O que é incrível nestes conflitos é a capacidade dos seres humanos... JEA - ...Em se adaptarem. JMR- E resistirem. Tu contavas-me no outro dia histórias sobre festas quando a guerra civil começou. É absurdo mas tu precisas da vida. JEA- As pessoas, em contexto de guerra, acabam por normalizar aquela experiência, quase como se fosse uma coisa banal..Não é bem realismo mágico - nesta nossa conversa com o realizador e com o escritor José Eduardo Agualusa fala-se em "realismo animista". Mas em Nayola sente-se sobretudo uma magia angolana que é realista. Temos um chacal, girafas, hienas, mas essencialmente três mulheres de gerações diferentes e uma árvore especial que cresce em direção à lua..Uma narrativa em dois tempos: a história de Nayola, ainda no fim da guerra civil em terreno de combate a tentar encontrar o marido guerrilheiro desaparecido. Ao mesmo tempo, anos mais tarde, já depois da guerra, seguimos outro segmento e acompanhamos a sua filha em Luanda, uma jovem rebelde que usa o hip-hop como arma de subversão para uma reivindicação contra o poder atual. Pelo meio, há a força da paisagem, a presença do belo, entre o inferno de uma guerra absurda que pôs irmãos a combater. Sempre com as cores de Angola e com uma dimensão sagrada do conto..José Miguel Ribeiro aplica uma estética de desenho pensada para um público adulto e com o peso da catarse. Sempre tão colado a uma ideia de arte plástica em movimento como de debate literário com as alegorias de uma tragédia contemporânea, seja em quimbundo ou em português com sotaque africano. Uma pintura sincera que nos coloca diante da dor angolana. E em termos de animação, trata-se de um novíssimo sistema estelar. Sortilégio lindo numa altura em que a animação portuguesa ganha uma visibilidade importantíssima. Já em breve os nossos ecrãs recebem Os Demónios do Meu Avô, de Nuno Beato, outra longa-metragem de animação portuguesa. Se antes não havia nada, agora tudo isto no mesmo ano em que João Gonzalez foi nomeado ao Óscar com Ice Merchants...

Nayola. A beleza angolana de José Miguel Ribeiro e José Eduardo Agualusa

Artigos Relacionados