Nasceu uma comissão popular: "A floresta é o meu pão!"
É um encontro improvável aquele que acaba de acontecer no Pinhal Interior: dirigentes do PCP e do CDS juntos numa comissão popular, no registo de povo unido que jamais será vencido. A sala de reuniões da Cooperativa Agrícola do Concelho de Pombal serviu de barriga de aluguer, na noite de terça-feira passada, para qualquer coisa que está a nascer: a Comissão Popular para a Defesa da Floresta e do Mundo Rural dos concelhos de Pombal e Pinhal Interior norte do distrito de Leiria.
O nome é longo e o caminho também. Mas está dado o primeiro passo, um ano depois do fogo que queimou parte desse território, e que deixou abertas feridas na população, mesmo naquela que não perdeu (diretamente) ninguém no incêndio. Pombal fica ainda a uma distância de segurança da área ardida no incêndio de Pedrógão, mas tem muito fogo na sua história, à conta da mancha florestal que envolve um dos maiores concelhos do país, com 640 km quadrados. O último foi em outubro de 2017, quando as chamas varreram o pinhal de Leiria e entraram pela mata nacional do Urso, até à praia do Osso do da Baleia. Arderam casas, foi preciso evacuar aldeias.
"É como se estivéssemos a pôr as barbas de molho", desabafa à entrada um dos 30 populares que ontem cruzaram a sala emprestada pela Copombal, e onde se misturam várias tendências políticas. Para espanto geral, entre os dez fundadores desta comissão há dirigentes do PCP e do CDS-PP. Há militantes do PS e do PSD. "Isto não tem nada a ver com política", ha-de referir várias vezes ao longo da noite Fernando Domingues, o último candidato da CDU à Câmara de Pombal. Tem um negócio de queijos, é um defensor da serra de Sicó, que conhece bem.
Na mesa está também o irmão, Jorge Domingues, o amigo Hugo Neves (advogado) e o camarada Adérito Araújo (professor universitário em Coimbra e presidente do consórcio europeu para a Matemática na Indústria). Também ele já foi candidato pela CDU à Câmara de Pombal, de onde é natural. Há ainda um convidado, velho conhecido dos comunistas: Isménio Oliveira, em representação da Confederação Nacional da Agricultura. O resto dos dez membros fundadores está na assistência, onde falta apenas Liliana Silva, dirigente do CDS-PP, que tem vindo a secretariar as reuniões. E por fim, populares curiosos. Vieram das aldeias serranas prontos para uma noite de catarse, e para perceberem como é que, afinal, podem fazer alguma coisa para defenderem os seus terrenos e as suas casas.
Ainda Fernando Domingues mal acabara a frase, abrindo o debate ao público, já o ex-deputado do PSD, Rodrigues Marques, se inscrevia para falar. Foi ali para saber duas coisas: "quando é que governo da geringonça - que fecha tudo: hospitais, centros de saúde, escolas - fecha a minha aldeia (Albergaria dos Doze) e quando é que podemos voltar ao PREC para uma revolta popular". Não disse nada sobre a floresta, mas a meio da intervenção saca da boina à Che Guevara e diz que está "pronto para a luta". A assistência sorri com a cena cómica, e é Arnaldo Botas quem devolve a seriedade à sessão, lamentando que o pinheiro tenha vindo paulatinamente a ser substituído por eucalipto em toda a região. Na verdade, dos 28 mil hectares de floresta no concelho, 5300 são eucalipto, face aos mais de 20 mil de pinheiro bravo. O resto é carvalho, pinheiro manso, floresta de "folhosas com resinosas", segundo os registos do Município de Pombal.
José Guardado levanta-se para contar como é agora "um agricultor à força", que se vê a braços com os terrenos que herdou dos pais, na aldeia de Vale Nabal, freguesia de Almagreira, no mesmo concelho de Pombal. Economista de formação, também ele já foi candidato à Câmara, pelo CDS. Diz que está ali para perceber os objetivos desta Comissão, levanta dúvidas, faz várias perguntas, e deixa um desabafo: "sou acusado pelos meus vizinhos de não apostar no eucalipto. A maioria planta-o porque é de rápida rentabilidade". Todos sabem que sim. Que em sete anos estão prontos para o abate e dão dinheiro.
É nessa altura que advogado Hugo Neves faz um ponto de ordem: aquela comissão já tem um manifesto, e quer pô-lo em prática: "pelo cumprimento da lei de bases da floresta, nomeadamente a revisão dos planos regionais de ordenamento florestal e dos planos de gestão florestal, cuja sujeição a ampla discussão pública alargada é imprescindível". A esse ponto segue-se a implementação urgente do cadastro rústico atualizado sobre todo o território nacional", o reforço dos meios humanos e financeiros para a defesa da floresta do ICNF, nomeadamente com a criação de equipas de sapadores florestais e a reconstituição do Corpo de Guardas Florestais. "E dos cantoneiros!" - atira alguém da assistência.
A Comissão clama por medidas de apoio à produção agrícola, à valorização dos produtos locais, dinamização dos mercados tradicionais, melhoria dos rendimentos dos pequenos agricultores e pela implementação da Carta da Agricultura Familiar. Lurdes Domingues, produtora de fisális (e outras frutas e hortícolas) na aldeia de Outeiro Galegas, diz que foi por isso que se juntou ao grupo. Queixa-se de não conseguir escoar os seus produtos, da concorrência dos grandes produtores que desaguam nos supermercados, e aproveita para contar que, para ter a casa segura, limpa o seu terreno e mais uns sete dos vizinhos, que não estão lá o ano inteiro.
À medida que a noite avança hão de contar-se outras histórias semelhantes. Como a de Casimiro Mendes, mais de 70 anos, natural de Vila Cã, habituado a ver arder floresta na sua aldeia e nos lugares vizinhos das freguesias de Abiul e Santiago de Litém. "Desde 1990 que assisto aos fogos. A gente liga a televisão e vê que vão milhões para isto e para aquilo, para o combate e prevenção, mas não se vê nada. Teoricamente é tudo muito bonito, mas na prática é zero. Não é o poder central que vai defender a nossa floresta. Temos que ser nós, com a ajuda das juntas e da Câmara", sublinha.
Não tardará muito até que as teorias da conspiração das "avionetas que espalham fogo", do loby dos eucaliptos "que espalha a doença do pinheiro" e do "remédio que seria queimar os incendiários" tome conta do debate. É quando entra em cena Joel Silva, promotor do movimento ReConstruir o Pinhal Interior Norte, ao leme de um grupo de voluntários que está a reconstruir duas casas destruídas pelo fogo. "A nossa floresta é como uma capoeira de galinhas que queremos guardar da raposa. Mas é um barril de pólvora, desde que o Casimiro deixou de fazer resina, por exemplo", explica, enquanto lembra que "não há milhões do Estado que tragam nenhuma solução mágica". E diz aquilo que, afinal, todos sabem: "ou cada um de nós faz o seu trabalho, e junta esforços, por exemplo com esta comissão, ou nada feito. Porque na floresta isto só lá vai com prevenção. Quando o fogo não é controlado, depois ninguém o agarra, como se viu no ano passado. O Luís que diga aqui quantos fogos já apagou no início, lá na Fontinha".
E Luís Silva, mecânico na aldeia da Fontinha, anui. "Isto parte da iniciativa de cada um. Se o vizinho não vem cortar os pinheiros, façam como eu: vão lá e cortem vocês", conclui Joel, que assim resume o espírito da comissão. "Não se esqueçam que a Lurdes produz fisális melhores que aqueles que se vendem no supermercado e custam cinco euros o kg. E que estamos numa região onde já há pés de açafrão plantados na serra, que valem 90 euros cada pé. O que não podemos é fazer as coisas como no tempo dos nossos avós, temos de fazer diferente. Ir ao facebook e promover os produtos, cada um fazer alguma coisa por si e pela comunidade".
O presidente da Junta da Redinha (que integra parte do maciço calcário da serra de Sicó), Paulo Duarte, ainda apontou a desertificação como causa do abandono do mundo rural. E o presidente da Cooperativa Agrícola justifica-o com o definhar do setor agrícola, apontando dados comparativos com os anos de 1980, quando ali chegou, como veterinário. E então Adérito Araújo fez as contas: "esta comissão só faz sentido com duas condições - que tenha pessoas, e se estiver focada em ações concretas, agindo localmente". Falta-lhe agora passar à prática. Para isso, o desafio é dilatar a comissão, fazê-la crescer em número de membros, nos seis concelhos a norte do Pinhal Interior: Pombal, Ansião, Alvaiázere, Figueiró dos Vinhos, Pedrógão Grande, Castanheira de Pera. Nessa altura, quando ganhar escala, a luta continua - na defesa de cada pedaço daquele território.