"Nas águas do Porto, captámos sons muito psicadélicos"
O que o atraiu nos sons destes portos?
Bom, começa pelo facto de eu ser de Beirute, uma cidade portuária, e de me habituar a ver o porto desde a minha varanda e não poder lá ir. Era uma questão de infância que eu tinha por resolver. Mas depois, também, o facto de ter estudado Economia [em Paris] e de ser fascinado por locais como Singapura ou Dubai, também portuários. Estas realidades foram um ponto de partida para uma intuição. Pensei: porque não tentar ter acesso aos portos e ver o que há em volta. Talvez um porto ainda conte algo sobre a cidade, de uma certa forma. E foi realmente o caso. Porque se formos ouvir, por exemplo, o porto de Atenas ou de Abu Dhabi temos um enorme contraste. Entre um porto que é mais silencioso e os locais que o circundam são mais barulhentos, como Atenas, e outro que é muito mais barulhento na sua atividade mas que tem um ambiente circundante muito mais calmo, como Abu Dhabi. Mas há mais contrastes: os bens que se veem, o tipo de comércio... essas coisas falam sobre as realidades dos países, se são sítios mais industriais, ou mais dedicados aos serviços, por exemplo.
Os sons das águas ajudam a contar essas histórias?
Contam essas histórias, mesmo que não de uma forma direta. Pelo menos contam-me a mim uma história que eu trago de lá em forma de uma exibição, ou de uma experiência, com todas estas associações que começamos a construir a partir do que trazemos dos portos, dos diferentes materiais que recolhemos. São diferentes camadas que podemos conectar.
E porquê o Porto (cidade)? O que o atraiu nos sons do Porto?
Porquê o Porto? Primeiro, por causa de Serralves, foi a principal conexão. E depois também pela sua história, que é muito ligada ao comércio e à importância da água no sistema comercial. Recolhemos os sons em 2018, quando viemos a Serralves, na altura, e fui ao porto de Leixões e ao Estuário Natural do Douro. E foi muito interessante e impactante aqui notar a mistura dos sons das diferentes correntes no ponto de interceção entre o rio Douro e o oceano. Captámos sons muito psicadélicos, únicos.
Já consegue então identificar um som característico do Porto?
Não apenas um som, mas uma acústica... geralmente, nos portos, temos os mesmos sons. Nos portos industriais temos as mesmas máquinas, as mesmas sirenes, mas mesmo que gravemos os mesmos sons e as mesmas máquinas em dois portos diferentes, a qualidade do som é diferente. Isso é para mim a identidade do lugar. É uma espécie de ecossistema sónico, que difere de lugar para lugar.
Também é músico. Como começou o seu interesse na exploração do som? Através da música ou da arte plástica?
É difícil dizer, na realidade. Acho que a arte sempre esteve aqui, a um nível abstrato e de pensamento conceptual. Isso ajudou-me a aprender música e ajudou-me a sentir confortável a trabalhar com a arte, a sentir-me próximo das artes, a conectar ideias.
Os seus trabalhos são muitas vezes descritos como um lugar de experimentação, onde se podem descobrir novos sons, novas formas e materiais para criar uma experiência sónica. Arte Sonora é uma etiqueta redutora?
Para mim a sound art teve sempre mais a ver com composição, algo que estava muito conectado com ideias que marcavam a música contemporânea, de Cage a Stockhausen. Foi assim que eu percebi a sound art. Antes de ser arte plástica, é composição.
Teve um projeto, WITHIN, baseado na exploração do som na perspetiva de uma comunidade de surdos. Que tipo de sensações procurou trabalhar nesse projeto?
Esse é um projeto fundamental, no sentido em que abriu em mim o entendimento do som como uma coisa multissensorial. Do toque à condutibilidade dos ossos, a sensação física, a linguagem gestual, os estímulos visuais do som... o som tornou-se para mim uma multiplicidade de coisas que podem falar, significar ou reproduzir som. A experiência com a comunidade surda, que continuo a desenvolver, trouxe-me ideias que transporto para projetos como este que podemos ver aqui em Serralves, em que posso sentar-me num material e sentir a vibração do som no corpo. Estas formas de perceber e sentir o som tornaram-se parte das instalações e do trabalho que faço e da abordagem aos materiais que usamos. A audição pode ser tátil, visual, física, é uma experiência sensorial completa.
As suas exibições convidam, portanto, a uma grande interação com o público, não são meramente contemplativas...
Sim. É uma audição ativa. Os espaços criados são espaços onde o som não vem ter contigo diretamente, mas sim obrigam-te a ir procurar o som. Nesta peça [uma das instalações no parque de Serralves], por exemplo, se apenas tentarmos ouvir o espaço, é como uma espécie de nevoeiro, muito difuso, mas à medida que nos aproximamos dos elementos que estão a produzir som começamos a misturar-nos com o que estamos a ouvir e a experimentar aquilo a que chamo uma audição ativa.
Sente-se desafiado pelos sons de diferentes materiais (da água ao mármore, madeiras, aço...), mas há algum critério para considerar um material como um possível instrumento?
Os materiais são desafiantes, mas não lhes imponho uma vontade enquanto compositor. Há que respeitar o estado dos materiais, não tentar fabricar um som. Temos que ser humildes perante a matéria-prima. O que posso fazer com uma pedra com 5000 anos? Se ela não quiser vibrar, não vou fazê-la vibrar, tenho que pensar noutra solução. Tudo começa por ouvir o material e partir daí para perceber a que é que ele se pode ligar e como pode fazer parte de um cosmos maior.
Há um grande apelo à comunhão com a Natureza nos seus trabalhos. A arte desempenha um papel importante nesta consciência ecológica de que o mundo tem urgência?
Sim, essa é uma questão complexa, especialmente neste mundo bem complexo em que vivemos atualmente. Qual é a função da arte e como encaramos a arte? Por vezes, tentamos proteger a arte como um campo extra político, mas é difícil navegar estes tempos. Nos meus projetos tento aprender com os materiais, sempre em respeito absoluto pelos elementos.
Regressou a Beirute desde a explosão que destruiu o porto que se habitou a ver da varanda?
Sim. Nós gravámos no porto de Beirute e acabámos na altura em que começou a grande crise económica do Líbano, por isso nunca chegámos a apresentar o que fizemos em Beirute. E depois o porto foi pelos ares... fomos os últimos a gravar o som do porto de Beirute. A partir dali a perceção ficou completamente diferente. O porto foi-se. Ficou o som da explosão a ecoar até hoje.