Napoleão e o português que um dia o enganou

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Napoleão ganhou 77 das 86 batalhas que travou, assinala o Le Monde. Um índice de sucesso de 90% com poucos paralelos na história, ainda por cima porque o imperador nascido na Córsega conseguiu num dado momento multiplicar por três o território de França. Génio militar, tanto por méritos do estudo como por ter percorrido todos os degraus da carreira das armas, morreu, porém, no exílio na remota ilha de Santa Helena, a 5 de maio de 1821, faz nesta quarta-feira 200 anos.

Pelo meio de inúmeras iniciativas editoriais, e também de concorridos leilões onde até madeixas do seu cabelo são licitadas por pequenas fortunas, este bicentenário da morte mostra bem como a figura do imperador nascido sem sangue azul (daí perceber mais do ofício da guerra do que qualquer outro imperador ou rei europeu) continua a fascinar. Não falta quem lhe atribua ideias revolucionárias bem à frente do seu tempo, também não falta quem o culpe por sangrentas guerras. Em entrevista ao DN, a historiadora Maria Antónia Lopes relembra o terror dos portugueses durante as invasões francesas, sobretudo a chefiada pelo marechal Massena em 1810-1811. "Nunca mais a população portuguesa voltou a sofrer tanto como na terceira invasão francesa", sublinha a professora da Universidade de Coimbra, instituição que escapou parcialmente ao saque feito à cidade, abandonada pelos habitantes para evitar os soldados de Napoleão.

As razões da derrota e do exílio do genial corso, primeiro em 1814 e definitivamente em 1815 quando o duque de Wellington o bate em Waterloo, são muitas, mas é habitual destacar o fracasso da invasão da Rússia, com o General Inverno a desbaratar todas as estratégias dos franceses. Mas convém não descurar a Guerra Peninsular, as derrotas infligidas pelo exército luso-britânico e também pelos guerrilheiros espanhóis aos sucessivos marechais enviados por Napoleão. Wellington, então Arthur Wellesley, bateu os franceses em 1808 na Roliça e no Vimeiro, ainda durante a segunda invasão. D. João VI, então ainda príncipe regente, fez de Wellesley conde e marquês, e de tal forma estava reconhecido que tornou-o por fim duque português.

Com a corte instalada no Rio de Janeiro desde 1808, em reação à invasão do ano anterior que quase surpreendera em Lisboa a família real, D. João VI evitou o destino do seu cunhado Fernando VII, que não só foi preso pelos franceses como viu o trono espanhol ser entregue a um irmão do imperador, José Bonaparte. Esta mudança da capital do império português para o outro lado do Atlântico foi de tal forma um golpe para Napoleão que este terá dito que o monarca português foi o único que o enganou. Enganou e, chegado ao Brasil, mandou logo invadir a Guiana Francesa, a retaliação possível contra a ocupação de Portugal.

D. João VI só regressou a Lisboa em 1821, pressionado pelas cortes liberais e deixando no Brasil D. Pedro, o herdeiro. Os infortúnios do monarca mal chegado a um Portugal dividido entre liberais e absolutistas são bem conhecidos, assim como o destino próprio que o Brasil acabou por seguir. Mas não deixa de ser irónico que no dia em que Napoleão morreu em Santa Helena, após seis anos de cativeiro pelos britânicos, estivesse a navegar no Atlântico, com velas apontadas a Lisboa, o tal português que o enganara.

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