Não vai faltar mescal no encontro sobre Malcolm Lowry em Lisboa

Acontece nos próximos dias 30 e 31 uma reunião de leitores e de especialistas na obra de Malcolm Lowry. É a primeira vez que este encontro habitual se dá fora do México.
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A sombra de Debaixo do Vulcão vai fazer-se na próxima semana em Lisboa, onde decorre o XIV Encontro Internacional Malcolm Lowry. Só a história deste romance mítico já seria suficiente para reunir especialistas: escrito como conto em 1937, Lowry passou os oito anos seguintes a transformá-lo num romance. Terminado em 1947, o romance marcou milhões de leitores e levou, após a morte do autor, a celebrá-lo anualmente na cidade de Cuernavaca - a Quauhnáhuac do livro -, onde é evocado sob várias formas. Desta vez, e pela primeira vez, o debate decorre em Lisboa, com participantes que vêm do México, França, Inglaterra, Estados Unidos, Colômbia e de Portugal.

Marcelo Teixeira, editor da Parsifal, é o responsável por esta transferência geográfica e falou com o DN sobre o escritor e o evento.

Um encontro Malcolm Lowry em Portugal era impensável ou apenas inesperado?

Não me parece que fosse completamente impensável, pois Malcolm Lowry é um dos grandes escritores do século XX. Mas admito que o facto de ter publicado em vida apenas dois livros não contribuísse para um encontro centrado na sua obra. Neste sentido, é inesperado, tanto mais que é organizado por um coletivo de admiradores de vários países que está baseado no México e à margem, portanto, da Academia portuguesa.

É a primeira vez que este encontro se realiza fora do México. Porque razão foi escolhido Portugal para esta sessão?

Este encontro realiza-se desde 2001, em Cuernavaca no Dia dos Mortos, dia em que se passa a ação de Debaixo do Vulcão. Reúne um grupo de admiradores e estudiosos lowryanos com formações distintas, grupo esse que é, digamos, o "núcleo duro", constituído por mexicanos, Félix García, Óscar Menéndez ou Alberto Rebollo; dois norte-americanos, John Prigge, Andrew Smith, e um português, que sou eu. Há dois anos, durante o XII Encontro, foi colocada a hipótese de se fazer o evento fora do México e pensou-se em Lisboa. A partir daí, foi trabalhar para criar as condições para que o Encontro se concretizasse.

O que torna especial este encontro sobre Lowry e a sua obra?

Estes encontros em Cuernavaca têm uma característica muito particular: são muito informais, e a eles têm acorrido admiradores de vários países. O que é curioso é que se verificou que grande parte destes entusiastas regressaria uma e outra vez nos anos seguintes e hoje são já bons amigos, fazendo na prática parte informal de um coletivo. Dois bons exemplos são os casos de Nigel Foxcroft e do Stephen Cooper, respeitados académicos que têm analisado em pormenor a obra de Lowry e que estarão em Lisboa. Mas também passaram por Cuernavaca ao longo dos anos estudiosos como Chris Ackerley, da Nova Zelândia e que decompôs e analisou detalhadamente cada capítulo de Debaixo do Vulcão em A Companion to Under the Volcano, Sherrill Grace, da Universidade da Colúmbia Britânica, Canadá, onde está o maior arquivo sobre Malcolm Lowry ou Paul Nixon, todos reputados especialistas mundiais.

Foi difícil escolher o 'elenco' de palestradores nacionais ou ainda existem interessados na obra de Lowry no nosso país?

Não foi nada difícil, Lowry tem admiradores suficientes em Portugal para fazer vários colóquios. Mas como a nossa ideia foi fazer um encontro abrangente - que fosse além dos habituais debates e mesas-redondas, privilegiando a inclusão de outras atividades, como o visionamento de filmes, uma apresentação de um livro, uma exposição de memorabilia lowryana e outra de gravura inspirada em Debaixo do Vulcão de um extraordinário artista plástico, Alejandro Aranda - que acaba de regressar dos Estados Unidos, onde fez uma exposição com enorme sucesso -, esta diversidade de atividades limita inevitavelmente o número de debates e, por consequência, o número de convites para integrar as mesas. Admito terem ficado de fora nomes que mereceriam participar, mas, na impossibilidade de convidar toda a gente, creio que conseguimos um excelente programa para homenagear Malcolm Lowry.

Que público poderá aparecer?

Acredito que o facto de a entrada ser livre pode trazer mais pessoas, que no fundo é o que pretendemos, para que mais pessoas conheçam a obra de Lowry e partilhem do nosso entusiasmo. Creio que o público será variado: haverá pessoas que conhecem a obra de Lowry há muitos anos, mas também leitores mais novos, sobretudo estudantes, cujo contacto com a sua obra seja recente.

Na sua opinião Debaixo do Vulcão é a sua única grande obra?

Sem dúvida alguma. E é uma obra maior da literatura europeia, que para a Time, o Le Monde ou a Modern Library integra a lista dos 100 melhores livros do século XX. Ainda há algum tempo também a Patti Smith fez uma lista dos livros que a marcaram e lá estava Debaixo do Vulcão.

O que o fascina em Lowry ao fim de tantos anos?

Vou tentar ser sucinto, o que não é fácil. A organização da sua estrutura; a tensão dramática; a capacidade metafórica, quer do ser humano, quer de uma Europa em crise; a descrição da violência e do desespero da condição humana, porque, ao contrário do que acontece com outros grandes escritores, para Lowry a escrita não constitui um escape, é o espelho da sua existência - mas atenção: refletindo sobre o que a vida tem de incoerente, de ilógico, de belo ou de estúpido, Debaixo do Vulcão é muito mais do que um mero exercício retratístico autobiográfico. E fascina-me também, porque conheço bem o país, a maneira como captou a intensidade da atmosfera do México, o que isto seja ou possa significar.

Debaixo do Vulcão só poderia ser escrito no México?

Não tenho dúvidas. Ao longo do século XX, centenas de escritores foram ao México pelas mais variadas razões: uns, para acompanhar a guerra civil, como John Reed; outros, em busca do paraíso perdido, como D. H. Lawrence, que escreveria A Serpente Emplumada e que disse mais ou menos isto: «Os antropólogos podem escrever o que quiserem sobre os mitos, mas venham ao México e perceberão que os deuses mordem»; Artaud, excomungado por Bretón e fugido da civilização europeia, procura a salvação na civilização asteca, curiosamente, acaba por ir para norte e escreveu sobre os tarahumaras; o misterioso B. Traven escreveu algumas das mais bonitas páginas sobre o México e os mexicanos; o Nobel Le Clézio tem casa no México e tem escrito alguns ensaios sobre o país; Graham Greene escreveu o seu melhor livro, O Poder e a Glória, tendo o México como pano de fundo... E tantos outros, como Calvino, William Burroughs, Kerouac, Simone de Beauvoir... Malcolm Lowry chega ao México por uma razão mais prosaica: Em setembro de 1936, ele e a mulher vão para Los Angeles, onde ele tenta trabalhar para a MGM. Como não consegue trabalho, vão para o México onde a vida é mais barata - sobretudo, as bebidas, diria eu. E fica fascinado com o que vê, com a atmosfera de cores e de cheiros, sobretudo depois de chegar a Cuernavaca, de onde se avista o vulcão Popocatépetl, que está ativo. Penso que a impressão que lhe causa o país pode ser resumida na célebre carta de janeiro de 1946 ao editor, na qual refere que se pode considerar o México como o lugar do mundo onde se pode colocar a Torre de Babel e o Éden, por isso o país é, ao mesmo tempo, o Paraíso e o Inferno - que fundamentarão a existência do vulcão e das barrancas, ravinas, no romance.

Que opinião tem da sua poesia?

Gosto da sua poesia, mas confesso não ser um dos poetas que mais me entusiasma.

O Debaixo do Vulcão foi publicado em língua inglesa em 1947 e só foi traduzido para português em 1961. Era incompreensível para a mentalidade portuguesa de então?

Não me parece. Pela minha experiência como editor, estas coisas demoram naturalmente algum tempo, por vezes alguns anos. Não me parece ser incompreensível para a mentalidade portuguesa da época, mas é verdade que não é um livro de leitura fácil. Mas Lowry explica bem as razões na carta a Jonathan Cape, o seu editor inglês.

A obra de Lowry está suficientemente editada em Portugal?

Sim, sem dúvida, com exceção de alguns contos escritos na sua juventude ou já como escritor consagrado - por exemplo «China», «June the 30th, 1934» e uns poucos mais -, está praticamente toda editada. Não está é disponível nas livrarias, porque, de um modo geral, são edições antigas.

Parte da obra foi publicada postumamente. Terá sido de acordo com o que Lowry desejaria ou faltou uma revisão final?

Essa é uma pergunta à qual nunca teremos uma resposta consensual. Mas tendo em consideração o tempo que levou a escrever e a reescrever o Debaixo do Vulcão, que foram oito anos, acredito que o resultado dos livros publicados postumamente seria outro.

Vai ser lançado no nosso país agora Cáustico Lunar (Ghostkeeper), o livro que estava a escrever nos últimos dias de vida. É mais um exemplo dos altos e baixos da produção de Lowry?

Nos últimos anos, Lowry aproveita para trabalhar em vários projetos, que serão editados postumamente, publicados em Portugal com os nomes Lunar Caustic, O Barco de Outubro para Gabriola ou Escuro Como o Túmulo Onde Jaz o Meu Amigo. Em relação a Lunar Caustic, escrito quando Lowry esteve internado durante duas semanas, em maio de 1936, no hospital psiquiátrico Bellevue, em Nova Iorque, com o título inicial de Delirium on the East River, há várias versões. O livro foi editado em Portugal em 1985, correspondendo à versão publicada inicialmente em 1968. Não tem, parece-me óbvio, a dimensão de Debaixo do Vulcão, mas é sempre motivo de contentamento o aparecimento de novas edições de Lowry em Portugal.

Como foi o seu reencontro com Lowry no 'desaparecido' Rumo ao Mar Branco?

Confesso não ter sido uma obra que me suscitasse grande entusiasmo.

Uma curiosidade: na II Guerra Mundial, Lowry quis alistar-se mas foi rejeitado. Um sentimento patriótico ou queria experiências literárias?

Numa carta ao amigo e poeta Conrad Aiken, ele diz que foi rejeitado pelos serviços do Canadá, mas a verdade talvez seja outra. Se numa primeira fase tentou, de facto, alistar-se, numa segunda - por amor, quanto a mim uma razão suficientemente nobre -, ele fugiu ao alistamento. Em setembro de 1939, quando começa a guerra, Lowry está a viver no Canadá, oficialmente recém-divorciado da mulher Jan Gabrial. Poucos dias depois de a Inglaterra se envolver no conflito, ele envia um telegrama ao pai a pedir-lhe para o deixar ir a Liverpool alistar-se, via Nova Iorque, aproveitando assim para encontrar-se com Margerie Bonner, por quem se apaixonara e com quem casaria um ano depois. Sem notícias de casa, Lowry pede a Benjamim Parks, um advogado de Los Angeles contratado pelo pai para o «controlar», que envie novo telegrama ao pai a insistir. Há, de facto, uma intenção inicial. Os dias vão passando, mas algumas semanas depois Margerie chega a Vancouver, fazendo com que as prioridades de Lowry passem a ser outras. Aliás, ele próprio escreve à mãe pouco depois a dizer que casaria com Margerie e que tudo faria para adiar o seu alistamento, embora em paralelo escreva a Aiken a dizer que lho haviam negado - o que não era verdade. Portanto, o amor à pátria passou para segundo plano, e Lowry e Margerie partiram de Vancouver e foram para Dollarton, onde foram felizes numa cabana de pescadores à beira de um lago, aproveitando Lowry para idealizar o projeto da trilogia A viagem que nunca termina e trabalhar em Debaixo do Vulcão, que concluiria algum tempo depois.

No programa estão várias "Pausa para mescal". Era indispensável...

Absolutamente! Uma homenagem a Malcolm Lowry sem mescal seria sempre um tributo incompleto.

Programa do XIV Encontro Internacional Malcolm Lowry

Local: Biblioteca Municipal Camões, Lisboa

Dia 30

15.00 Sessão de Abertura (Marcelo Teixeira, Félix García e Jennifer Feller

15.15 Conferência «The Kaleidoscopic Vision of Malcolm Lowry: Souls and Shamans», de Nigel Foxcroft (Apresentação: Stephen Cooper)

16.00 Inauguração da exposição de gravura «Paralelo 19», de Alejandro Aranda

16.15 Pausa para mescal

16.30 MESA 1 - "MALCOLM LOWRY POETA" Participantes: Ana Isabel Soares, Lauren Mendinueta e Manuel da Silva Ramos. Moderação de Maria João Cantinho e leitura de poemas por Miguel Martins.

17.30 Exibição do documentário «Cantina La Estrella», de DanyHurpin

18.00 Apresentação do livro «An Ofrendato "Under the Volcano"», de Stephen Cooper, com apresentação de Nayeli SánchezGuevara

Dia 31

10.00 Conferência «Chemins qui ne mènent nulle part», de Daniel Leuwers com apresentação de Dany Hurpin

10.30 Exibição do documentário «Día de Muertos en Amilcingo» de Emiliano Menéndez

11.15 Conferência «Día de Muertos», de Mercedes Pedrero com apresentação de Marcelo Teixeira.

12.00 MESA 2: "DEBAIXO DO VULCÃO": UM LIVRO PARA LEVAR PARA UMA ILHA DESERTA» Participantes: Mário de Carvalho, Ana Cristina Leonardo, José Mário Silva e Stephen Cooper, com moderação de Pedro Almeida Vieira)

15.00 Exibição de documentário «Malcolm Lowry en México», de Óscar Menéndez com apresentação de Félix García e debate com o realizador Óscar Menéndez.

16.15 Conferência «Malcolm Lowry e Portugal», de Marcelo Teixeira, com apresentação de Dany Hurpin.

17.00 Conferência «El Volcán, la Tumba y el Mezcal - Nada es Casualidad», de Alberto Rebollo, com apresentação de Nayeli Sánchez Guevara.

17.30 Leitura de excertos de «Debaixo do Azul, sobre o Vulcão» por José Agostinho Baptista

18.00 Sessão de encerramento pelo Colectivo Fundación Malcolm Lowry.

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