«Não sou tão certinha quanto aparento»
Foi uma menina bem comportada e depois uma adolescente rebelde. Filha única, criada num ambiente familiar em que a disciplina, o rigor e a exigência do pai eram contrabalançados pela doçura, e bom humor, da mãe, fez-se dura de roer, sem se calar perante o que considerava uma injustiça. O diário e a sala e o quarto só dela fizeram-na perceber que ela própria era a sua melhor companhia, apesar dos muitos amigos e primos e vida agitada lá fora. Aos 18 anos, desistiu do curso de românicas, saiu de casa, zangou-se, fez cortes, fez pontes, desbravou mundo. Foi ser atriz, locutora, apresentadora de televisão e de festivais da canção, escrever letras de músicas e depois romances e livros infantis e poemas, e viver. Viver muito. Não a deixaram ser canhota, mas não conseguiram impedi-la de ser tudo o que quis.
Escreve: «Dei um salto no escuro sem olhar para trás aos 18 anos. Talvez o mesmo salto que me sinto a dar com a escrita deste livro.» Porquê?
Escrevi um livro muito diferente dos anteriores que ou eram romances ou contos. Este não só não é ficção como tem uma estrutura que eu própria só fui desbravando à medida que avançava. Um livro com excertos de correspondência, testemunhos, excertos de um diário, reflexões diversas foi mesmo um salto no escuro.
O Sexo Inútil tem como fio condutor a sua correspondência com Joana, uma estudante de medicina de 21 anos, às voltas com o assumir, perante si própria, a sua orientação sexual. Como chegou a esta ideia?
Tinha há muito a ideia de escrever sobre a dignidade e o preconceito. Ao longo de 40 anos fui juntando cartas de pessoas que se debatiam com essa questão, e quando me estava a preparar para organizar e ler o material que tinha, surgiu esta hipótese. Estava, havia dez ou onze meses, a responder aos e-mails diários desta jovem que atravessava um período particularmente difícil e pensei que, se ela me autorizasse, este poderia ser um bom ponto de partida para o livro que queria escrever.
O Sexo Inútil porquê?
As sociedades ocidentais refletem, em muitos aspetos, a herança da moral judaico-cristã que condena o prazer e o erotismo. Como dizia Nietzsche, «o cristianismo deu veneno a beber a Eros». É uma frase que cito bastante porque resume a ideia que quero veicular. De acordo com esta moral, o sexo só é legítimo quando tem esse caráter «utilitário» de possibilitar a procriação. Quando essa hipótese não existe, é como se o ato sexual e todas as manifestações eróticas não fossem legítimas e se revestissem de alguma inutilidade. Isto inspirou-me o título.
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