Não nos enganemos, o mundo está perigoso
Carregados pelo peso da ideia de que todos os pessimistas são Velhos do Restelo, e sabendo que é cool vender a dimensão mais favorável de tudo o que fazemos, andamos perdidos sem saber o que fazer com a realidade. Só que mesmo os otimistas não vão conseguir escapar. Começando a listar os eventos, presentes e futuros, que resultam do que andamos a fazer como espécie humana, descobrimos que há razões para temer o pior.
Venho de uma conversa com José Gil, no Expresso da Manhã, onde confirmei que um dos grandes pensadores do nosso tempo lamenta não poder estar otimista. E li ontem António Barreto, num texto no Público, sobre "um verão de rara violência e perigo iminente". Talvez a atitude mais sensata, para este filósofo e para este sociólogo, fosse a de não incomodarem quem está de férias, mas é exatamente por nunca se conformarem que vale a pena ouvi-los e lê-los no tempo em que, por estarmos de férias, é suposto termos tempo para pensar na vida.
Longe da corrida casa/trabalho/casa, gastamos o que ganhamos e o que poupamos, alguns até o que pediram emprestado, e ficamos à espera de que alguém encontre uma solução para pagar o que temos de comprar com o dinheiro que não teremos quando acabarem as férias. Enquanto isso, alguns de nós, "ricos e poderosos", como nos lembra Barreto, "não querem abrir as mãos. Pelo contrário, parecem estar convencidos de que o momento é propício a aumentar os poderes e a multiplicar os bens e as fortunas". José Gil vê o capitalismo como "a realização sistemática social e económica da ganância" e lamenta que não exista nenhuma proposta de substituição do sistema capitalista. Enquanto o tempo corre é preciso lembrar que a estatística não resolve, simplesmente mascara, a pobreza extrema que a todos nos devia envergonhar. Mas é ela que serve aos defensores da desregulação do sistema para exigir ainda menos Estado. O Estado que até os seus defensores querem ver pelas costas, porque descobrem com muita frequência que ele está ao serviço dos mercados.
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Pelo mundo fora multiplicam-se os casos de fome generalizada e até nos países mais miseráveis se produzem multimilionários com uma inusitada velocidade. No Ocidente agrava-se a perda de poder de compra das pessoas com menos recursos e nem a classe média escapa à tareia inflacionista. Os populismos e os nacionalismos crescem, a guerra é vista como uma coisa natural, a pedir "apenas" que tomemos partido por uma das partes. Os famosos mercados parecem baratas tontas a fugir do chinelo e já ninguém sabe quando e como vai estabilizar o mercado energético. Esgotamos cada vez mais cedo os recursos que o Planeta tem para nos dar com capacidade de os substituir anualmente. Caminhamos, se nada for feito, avisa-nos o filósofo, para a extinção. "Passamos cinco meses a consumir o que o Planeta tem para nos dar num ano inteiro e os restantes sete meses a trabalhar para um suicídio coletivo", é isto que nos diz José Gil. Tão fácil de entender, mas ninguém quer saber.
Não estaremos cá quando, e se, chegar o momento, mas até lá temos de viver uma crise ambiental, acompanhada de uma crise política, alimentada por uma crise económica e social que vai acabar por dar uma nova vida a populismos extremistas. Bolsonaro voltar a ganhar no Brasil ou Trump voltar ainda mais radical à presidência dos Estados Unidos, enquanto a extrema-direita cresce na Europa desejosa de correr para os braços de Putin, não é nada que se possa excluir, nem sequer considerar pouco provável.
É isto que andamos a fazer.
Jornalista