Não me despedi de Luis Sepúlveda na Póvoa de Varzim
O escritor chileno Luis Sepúlveda era um fã de Portugal e cá vinha várias vezes. Por prazer, gostava das conversas e do que comia, e porque também a isso era obrigado, afinal tinha uma legião de fãs muito grande no nosso país e não podia faltar à Feira do Livro de Lisboa. Outro evento em que marcava sempre presença era o das Correntes d'Escritas, o encontro literário de línguas portuguesa e espanhola que se realiza na Póvoa de Varzim e onde se reúnem dezenas de escritores da Península Ibérica, de África e da América Latina e de outros lugares onde existem falantes delas. Por ser visita habitual do evento ninguém estranhava reencontrá-lo todos os anos naquela cidade.
Nem eu, que me cruzei com ele logo à chegada na última edição, em fevereiro, e nos cumprimentámos, sem poder imaginar que se estava a escrever o último episódio da vida do escritor. O chileno era um entrevistado habitual em cada livro que lançava na nossa língua e vê-lo nas Correntes, na Feira do Livro ou no hotel onde ficava em Lisboa, criou em mim aquela imagem de que "para o ano há mais". Não há essa possibilidade desde ontem. Isso não voltará a acontecer, e agora resta-me reler essas conversas que eram sempre marcadas por uma perspetiva histórica, nem que fosse aquando do lançamento de uma das suas fábulas infantojuvenis, pois sempre existia um momento em que os personagens deixavam transparecer os acontecimentos que guiam a vida dos adultos.
A vida de Sepúlveda tinha uma sombra que o perseguia, a de ter estado algures no seu passado junto dos últimos momentos do presidente chileno Salvador Allende, assassinado no golpe militar de Pinochet, que o depôs. E era-me difícil olhar para ele enquanto escritor de livros para jovens sem que estivesse com uma arma nas mãos. Não que a conversa dele fosse por aí, antes porque não se conseguia separar as narrativas escritas tantas décadas depois daqueles instantes revolucionários que o obrigaram ao exílio e, a dado momento, à escrita.
Era o caso do romance O Fim da História, de 2016, em que recuperava um antigo personagem do livro Nome de Toureiro. Juan Belmonte era um guerrilheiro e a mulher a sua companheira, Verónica, uma das vítimas torturadas pela ditadura de Pinochet. Ou o conjunto de crónicas Últimas Notícias do Sul, de 2012, com as quais percorre o sul do seu país para contar o que foi e o que é.
O Velho Que Lia Romances de Amor, foi logo um sucesso. O contador de histórias que existia em Luis Sepúlveda agradava aos leitores e ambas as partes fizeram o pacto de continuar a escrever e a ler. Autor e leitor eram inseparáveis na sua obra. Tanto assim que, nesta manhã de quinta-feira, a notícia da sua morte emocionou milhares de leitores - já tive testemunho dessa emoção - e torna-se um emblema das mortes trágicas dos tempos dramáticos que vivemos. Dificilmente alguma outra pessoa esteve na boca das pessoas de forma tão sincera desde que se soube que estava infetado. "E o Sepúlveda, como está?" era uma pergunta que me faziam e que eu próprio também, adiando saber a resposta enquanto não fosse a desejada.
Há dias em que certas notícias não fazem falta. A da morte de Luis Sepúlveda é uma delas. Até porque todos os que estiveram nas Correntes em fevereiro acreditavam que para o ano voltaríamos a estar juntos e que o escritor iria ser o centro das atenções, principalmente das bocas: "Então, grande susto que nos pregaste." E que ainda viria à Feira do Livro de Lisboa para lançar algum livro novo, porque estava sempre a escrever. Infelizmente, não me despedi de Luis como deveria ter acontecido. Fica a memória daquele jeito solene que por vezes colocava nas conversas, entre risadas e boas histórias para animar a entrevista. Nem eu, nem os leitores, nem os que o admiravam e tiveram momentos de prazer com a leitura de narrativas em que cada um viajava a partir das palavras que o autor juntara em páginas que se liam e nos inspiravam. Adeus Luis Sepúlveda.