"Llembro-me de ser gozado na rua por cantar o fado. Morava no rés-do-chão, as pessoas passavam ao pé da minha casa e eu tinha de ouvir fado baixinho no meu quarto, às escondidas. Depois, com os meus amigos, ia para as garagens ouvir rock, ouvia tudo o que se ouvia na minha geração. E lembro-me de ter uns amigos no Brasil que diziam [faz sotaque]: "Fado? Essa música é brega, é p"ra chorar."".Mário Laginha sorri enquanto ouve Camané falar. Também ele torna a olhar para si miúdo. "Quando estava a estudar jazz eu achava que o fado não tinha graça nenhuma. Há muita tendência, quando se é muito novo, a ter ideias muito definitivas. Uma pessoa não conhece nada e acha que sabe o suficiente para dizer que não gosta. Depois comecei a ouvir umas coisas da Amália, depois ouvi o Camané, e gostei imenso. Até que cheguei ao ponto: "Olha, afinal eu gosto de fado."".Os dois voltam a encontrar-se hoje na Casa da Música, no Porto, naquele que será o primeiro concerto da digressão Aqui Está-Se Sossegado, que terminará a 20 de dezembro no Coliseu dos Recreios. Ao Porto segue-se o Centro de Artes de Águeda, a 9 de fevereiro.."Já nem me lembro como é que nos conhecemos", começa Camané. Mário Laginha pensa e lança: "Acho que a primeira coisa que fizemos foi só uma brincadeira. Telefonou-me o Manuel Faria porque lhe tinham pedido uma ideia para um lançamento de um carro e disse: "Lembrei-me de ti e do Camané."" Nesse primeiro concerto tocaram fado, Tom Jobim e Chico Buarque..Mais tarde, em 2008, veio o projeto Vadios, dos dois e de Bernardo Sassetti. Já então, como acontecerá com Aqui Está-Se Sossegado, o reportório centrava-se no fado. Nada de fusões entre o jazz, de onde um vem, e o fado, casa do outro. "Mas nem pensar. Não suporto fusões. Seria um erro querer torná-lo original, obrigando o fado a perder a sua essência", diz, pronto, o pianista..Senta-se ao piano e toca, em puro jazz, aquilo que, distante, parece ser Gaivota, fado de Alain Oulman cantado por Amália. "Para isto toco jazz", interrompe. Depois torna a tocá-lo, encontra-lhe o fado. "Tentar ir à procura da linguagem, daquele balanço, esse é que é o desafio."."E o fado [por si] já tem muito de jazz", reflete Camané, acrescentando que hoje se "aligeira muito a música, e o fado não é música ligeira. A ideia é que um músico consiga entrar na profundidade e na autenticidade desta música. É uma coisa de grande austeridade também, de sentimentos muito profundos, muito fortes". Quando o fadista começou a trabalhar com Laginha, percebeu que "podia ficar descansado". Falavam a mesma língua..Para perceber o que dizia bastava olhar para eles naquele dia em que o sol entrava por todas as janelas em torno do piano. Por vezes começavam a cantar uma canção juntos, com Mário Laginha a cantar mais baixo e a percorrer o teclado.."Eu vou dar a volta a isto", avisa Camané. "Estou a vê-lo como uma coisa mais Oulman, mais solta." Depois, pediu ao pianista que tocasse Abandono, que surgiu quando Mário Laginha lembrava a associação que se seguiu ao 25 de Abril entre o fado e o antigo regime. "É mentira. Os meus pais eram de esquerda e sempre estiveram ligados ao fado. A Amália cantou o Abandono, sobre os presos políticos, em 1966.".E sentou-se ao lado de Laginha no banco. Não estávamos a filmar, eles não estavam ainda a ensaiar. Mas falava-se de fado e eles foram tocá-lo, com Camané a começar num assombroso "Por teu livre pensamento...".Afinal, lembrava o fadista, "o fado começou ao piano". E foi também assim, ao piano, que ele conheceu os inéditos de Alain Oulman que lhe foram mostrados pelo filho do compositor, Nicholas, e que se tornariam alguns dos fados mais marcantes do seu reportório, como Sei de Um Rio ou Te Juro, fado que também tocaram nessa tarde, como deverão fazê-lo hoje no palco.."Tenho um professor muito bom".Mário Laginha, autor de Ai, Margarida, cantado pelo fadista, diz que a "pulsação" do fado lhe é agora muito mais natural do que quando começou a tocá-lo. "O Camané está num mundo que acho que poucos dominam tão bem como ele. E muitas vezes eu aprendo coisas porque ele me diz. Tenho um professor muito bom. Vou aumentando o léxico. O fado tem uma identidade tão forte.".Camané anui, por um lado, mas replica: "O Mário estava a dizer que há sempre muito por descobrir, e é verdade, mas não acredito que haja um português que, mesmo sem querer, não tenha assimilado muitas coisas que têm que ver com este ambiente musical que é o fado. O fado tem um swing, uma coisa própria. Não há nenhum português que não tenha isso. Eles dizem que não, que não gostam, mas isso, sem querer, está lá, porque eles ouviram. Passaram aqui em Lisboa, no Bairro Alto, e ao atravessarem a rua ouviram, e aquilo ficou.".Aqui Está-Se Sossegado, poema de Fernando Pessoa que dá nome a este ciclo de concertos, é a letra do fado homónimo cantado por Camané no disco Infinito Presente (2015). "É um tema que foi feito pelo meu bisavô em 1918, e eu nunca o tinha ouvido cantar", recorda, contando que foi um colecionador quem, nessa altura, lhe fez chegar um disco de José Júlio Paiva..Cantar e tocar até ao fim da vida.Perguntamos-lhe se a voz do seu bisavô tem qualquer coisa que ver com a sua. "Tem, tem tudo a ver, porque tem muito fado. Nem sei explicar isto, mas o fado é a minha forma de cantar. Eu só sou cantor porque sou fadista. Tudo o que aprendi tem a ver com o fado", responde, vindo de uma família ligada ao fado, onde cresceu com os irmãos e hoje também fadistas Pedro e Hélder Moutinho. Fala sob o olhar atento de Laginha..Os dois chegam à conclusão de que, nos dias de hoje, "em que estão na moda as pontes", diz o pianista, parece "radical", embora não o seja, fazer algo assim, centrado apenas no fado, procurando aprofundá-lo.."Acho que aquilo que tem essência, no sentido de ter algo que é verdadeiro e bem feito, perdura no tempo. Pode passar de moda, mas as modas é que são muito efémeras. Na roupa há isso. Eu lembro-me de, no liceu, quando tinha 13 anos, haver a moda das calças à boca-de-sino, e eu achava que era a coisa mais bonita que alguém alguma vez tinha feito. Ao fim de dois ou três anos já não as podia ver. Mas se calhar as mais bem desenhadas vão voltar a ser usadas.".Camané, que por esta altura dava uma gargalhada ao ouvir Laginha, sabe o que são as modas. "O fado não são modas, nunca foi, nem faz sentido. Ainda bem que agora está na moda, tenho imensos concertos, mas a verdade é que no meu primeiro disco fiz três concertos em Portugal, dois não tinham ninguém, e fiz 20 e tal lá fora. Eu canto fado desde os 10 anos. Tenho 52. O fado é uma música para a vida. Aquela vontade que tenho vontade de ser velhinho e estar a cantar...".Mário Laginha toca há 38 anos - "Acho eu." Tem 58. "Nunca mais serei novidade. Aquela coisa da surpresa: "Já ouviram...?" O último grito. Por outro lado, olho para isso com alegria, porque acho que é ótimo chegar aqui ao fim destes anos a tocar. Nunca ganhei a vida de outra maneira. Acho essa longevidade muito atraente.".Aqui Está-Se Sossegado. Voltamos ao nome deste ciclo de concertos que hoje começam. "Tem que ver com o Infinito Presente, com estar centrado no dia de hoje, sem o peso do passado, e da culpa, e sem medo do futuro." No palco, continua Camané, "vamos estar muito calmos, vamos estar ali a conversar um com o outro e a partilhar isso com o público". Depois, deixámo-los trabalhar.