A 25 de novembro assinala-se o Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres. Os números revelados na passada sexta-feira mostram que as mulheres continuam a sofrer violência extrema, sobretudo nas relações de intimidade. Em Portugal, cinco mulheres por mês são vítimas de atos violentos - três acabam por morrer às mãos dos seus agressores. São estas as conclusões do último relatório do Observatório de Mulheres Assassinadas (OMA) elaborado pela União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR)..O OMA reflete os números negros traçados pelas notícias publicadas na imprensa nacional entre o dia 1 de janeiro e 12 de novembro de 2019, período durante o qual houve 28 femicídios - nas relações de intimidade e familiares, dois femicídios (em contextos que não os de intimidade) e ainda 27 tentativas de femicídio..Elisabete Brasil é jurista e trabalha na área da violência de género há 23 anos - fez parte, até junho deste ano, da UMAR e integra atualmente a associação Feministas em Movimento, tendo estado à frente do OMA..Neste ano assinalam-se os 20 anos das políticas públicas portuguesas de prevenção e combate à violência doméstica. Está tudo bem no papel mas falta a aplicação prática destas medidas? Não está tudo bem no papel. O que sabemos é que temos políticas públicas que se iniciaram há 20 anos e depois de estudos de prevalência [da violência doméstica] por causa de um papel maior de Portugal na esfera internacional e no seguimento da assinatura de convenções. Portugal tinha saído de 48 anos de ditadura e olhava-se agora para a condição da mulher. Foi também a altura dos primeiros estudos de género..Portugal foi obrigado, por força dessa entrada na esfera internacional, a debater estes temas? Essa é uma grande questão, se foi Portugal que estava muito atento e preocupado com a sua situação interna - nada parece indicar que o tenha sido - ou se foi muito mais uma imposição internacional. É verdade que em 1997 Portugal faz o primeiro plano global para a igualdade e já tinha contratualizado o primeiro estudo de prevalência da violência contra as mulheres (em 1996)..Passaram 20 anos sobre esse estudo. Estamos muito longe do cenário traçado nessa altura? Não. Descobre-se então que, no nosso país, a violência contra as mulheres acontece essencialmente na intimidade e que há uma percentagem elevada de mulheres que a sofrem - cerca de 40 por cento das mulheres [ouvidas] sofriam violência nas suas relações de intimidade. Portugal foi obrigado a tomar medidas e por isso houve a aprovação em 1999 desse primeiro plano contra a violência doméstica. Era um plano muito inócuo, mas foi ao abrigo deste plano que surgiram as primeiras casas abrigo em Portugal..Em 2000, a violência doméstica passa a ser crime público. Mudou de facto alguma coisa? Há marcos que são para assinalar, é verdade. Em 2000, o Estado passa a ser responsável pelo combate a este flagelo e dota o Ministério Público de competências para prosseguir com o inquérito, mas todas a entidades públicas e privadas são obrigadas a ter um papel participativo neste combate..Defende que a violência contra as mulheres está ligada às relações de poder. Porquê? Ainda custa muito às pessoas que uma mulher e um homem possam trocar os papéis sociais: que ela vá para o trabalho e ele fique em casa a cuidar dos filhos, isso ainda não é muito bem visto. Nós não temos investido na prevenção primária. Não devemos pensar que vamos baixar a violência se não atacarmos as causas estruturais desta violência, que estão enraizadas numa sociedade patriarcal. A luta contra a violência doméstica tem de se fazer por via de estratégias de igualdade entre homens e mulheres, de igualdade de género..Quais são as medidas mais urgentes a aplicar? A área da prevenção é uma exigência, não é fazer como temos feito até agora. Tem de ser algo sistemático, integrado no sistema de educação, com professores ou professoras que sabem do que estão a falar ou de pessoas externas às escolas mas que possam ser integradas nos quadros do Ministério da Educação para assumir estes conteúdos. Temos um plano nacional para a educação que já fala desta questão [da igualdade] e das questões da cidadania, mas nem todas as escolas o seguem. Portugal tem guiões de igualdade prontos, precisamos é de materialização das coisas que existem. A outra área é a dos recursos, não precisamos só de dizer que temos um número global de estruturas de atendimento - é bom que as tenhamos, mas precisamos de estruturas de atendimento que respondam aos problemas concretos das vítimas de violência doméstica..Que tipo de estruturas? Temos de ter estruturas a funcionar 24 sobre 24 horas. Todos os relatórios anuais de violência doméstica dizem o mesmo: o grosso da violência doméstica acontece depois das 19.00. Se é das sete da tarde à uma da manhã que há mais violência, não se entende por que é que a essa hora não existe um atendimento especializado para as vítimas. Portugal tem investido na formação de polícias, mas são polícias de investigação, não são polícias para o primeiro embate. Temos alguns, mas nunca na hora em que há mais violência doméstica. Não se pode dizer que temos equipas, é preciso falar verdade, falar claro..A violência doméstica não acontece em horários das nove às cinco, é isso? A violência doméstica acontece em qualquer hora do dia, mas é mais frequente a partir das 19.00. Então quem é que está a trabalhar para as vítimas a partir dessa hora? Os polícias de plantão, a emergência dos hospitais - mas já sem serviço social, porque estará encerrado - e a linha 144 (Linha Nacional de Emergência Social]. Passados 20 anos, é isto que nós temos para dar às vítimas a partir das cinco ou seis da tarde. Precisamos que estas estruturas funcionem e que estejam descentralizadas e que sejam encontradas formas para as aumentar de forma transversal. Funcionamos por modas - houve um tempo em que a moda era fazer casas de abrigo -, agora temos o dobro das casas de abrigo que a lei diz que devíamos ter - depois [a moda] foi abrir casas de emergência para as vítimas irem dormir a meio da noite. Temos sempre investido não na responsabilização do agressor, mas em retirar as vítimas de casa..Defende que deviam ser os agressores a sair de casa e não as vítimas. As vítimas - mulheres e crianças - é que deviam ficar nas suas casas. Facilitamos um sistema que continua a revitimizar porque diz a uma vítima que tem de sair com a roupa do corpo para se refugiar não se sabe bem onde, tirando as crianças das suas escolas, as mulheres dos seus empregos e das suas redes de suporte no momento em que mais precisam de suporte e de apoio. Estão sempre isoladas. E depois dizem que as vítimas voltam [para o agressor]. A minha experiência de 23 anos é que as mulheres não voltam, algumas voltam, mas não é a maioria e depende muito da qualidade dos serviços dos profissionais que as acompanham e daquilo que o Estado lhes proporciona como vítimas..Há poucos dias a procuradora-geral da República [Lucília Gago] assinou uma diretiva que obriga à recolha do testemunho das crianças expostas a violência doméstica para memória futura. Anunciou-se também uma consulta pública para que os juízes de instrução possam determinar em simultâneo as medidas de coação a agressores e as medidas provisórias relativas às crianças. Fica-se com a sensação de que se está sempre a discutir as mesmas coisas. Por exemplo, era necessário uma consulta pública?.Não, já sabemos isso tudo. Em 2015, fez-se uma alteração ao Código Penal e essas questões já estão presentes na lei. O que temos é uma diretiva de alguém que comanda o Ministério Público e que percebeu que a lei não está a ser cumprida. O que eu gostaria é que esta diretiva fosse desnecessária, uma vez que já existe uma lei que o obriga a fazer..Diz que as mulheres estão cansadas e que há descrença, por parte das vítimas, no sistema. Porquê?.Há um cansaço enorme. Todos os que olham para as políticas públicas e para o quadro legal ao longo destes 20 anos não conseguem perceber por que é que não fomos mais além, sabendo que isso depende da vontade de quem está a aplicar a lei e dos meios que tenha à disposição para o fazer. O sistema está montado para se servir a si próprio e ele tem de servir as vítimas. Vamos ter polícias especializados - acho muito bem -, mas que não estejam lá só das nove às cinco, que estejam lá de madrugada quando elas estão a levar porrada.