Um consulado nos Açores do tempo de George Washington

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Relembra a americana Kathryn Hammond que "quando abrimos este consulado nos Açores, Thomas Jefferson era secretário de Estado e George Washington o presidente". Foi há 225 anos que o primeiro dos antecessores da atual cônsul se instalou na Horta, primeira cidade açoriana a contar com representação diplomática, sendo que hoje é em Ponta Delgada que Hammond trabalha.

A celebração é na terça-feira dia 7, e neste sábado os Estados Unidos celebram um outro aniversário, o da Declaração de Independência de 1776, escrita por Jefferson e que foi confirmada por uma guerra liderada por Washington, os dois pais fundadores que Hammond refere na entrevista que deu ao DN.

E Portugal foi o terceiro país a reconhecer a nova nação, um sinal de iniciativa política que D. Maria I quis dar, mesmo arriscando um pouco a relação com os britânicos, tradicionais aliados. Digo um pouco, porque quando a Corte de Lisboa se decidiu pelo reconhecimento já havia negociações para que Jorge III desse por perdidas as 13 colónias da América do Norte e a vida seguisse em frente, como conta Tiago Moreira de Sá no seu livro sobre as relações de dois séculos e meio entre Portugal e os Estados Unidos.

Pela geografia, os Açores sempre atraíram os americanos. Em tempos recrutavam lá os melhores arpoadores para a caça à baleia (como os que Melville pôs no seu Moby Dick), depois instalaram-se na Terceira, fazendo das Lajes uma das suas mais importantes bases durante a Guerra Fria e não só. Milhares de açorianos também partiram para os Estados Unidos em busca do sonho americano, como muitos que conheci em New Bedford, e desta vez falo do congressista Tony Cabral, ou em San Diego, onde vive o meu amigo Idalmiro da Rosa, nosso cônsul honorário. Por coincidência, ambos nasceram no Pico, essa ilha que tem a mais alta montanha de Portugal.

Nas reportagens que fiz nos Estados Unidos nas comunidades portuguesas conheci algarvios, beirões, até setubalenses como eu, mas os açorianos são a maioria e a cultura regional destaca-se, como as cantigas de desafio que ouvi um dia no centro cultural em Lowell, perto de Boston, levado por Liliana de Sousa (uma algarvia de Olhão). No jornal deste sábado uma reportagem em Artesia, na Califórnia, mostra exatamente a força das tradições açorianas, como são as Festas do Divino Espírito Santo.

Há uma curiosa figura que sobressai nas relações entre Portugal e os Estados Unidos e que não é açoriano mas sim alentejano, o abade Correia da Serra. Era um brilhante cientista português, muito viajado e de grande reputação na Europa. Instalou-se na América no início do século XIX e com a sua cultura impressionou tanto o ex-presidente Jefferson (foi eleito depois de Washington e de John Adams) que este lhe reservava sempre um quarto na sua residência de Monticello, na Virgínia. Ainda lá existe o Abbé Corrêa"s Room.

Designado embaixador pela Corte do Rio de Janeiro, capital de Portugal desde que D. João VI lá chegara em 1808 em fuga das tropas de Napoleão entradas em Lisboa, o abade nascido em Serpa fez também amizade com o presidente James Madison e começou a insistir numa aliança entre portugueses e americanos. O presidente seguinte, James Monroe, não gostou tanto do estilo de Correia da Serra como os antecessores e mostrou um distanciamento que magoou o português a ponto de este um dia ter recusado brindar ao inquilino da Casa Branca. O curioso é que assim que o Brasil se tornou independente em 1822, o enviado diplomático do imperador D. Pedro I (o nosso D. Pedro IV) quando foi recebido por Monroe para obter o reconhecimento fez questão de voltar a propor a aliança, na prática a mesma que o abade propunha pois na época em que viveu em Washington o Brasil era o coração e a cabeça do Império Português.

Antiga e fortíssima, pois, esta relação. Nunca houve guerra entre os Estados Unidos e Portugal, mesmo que discretamente americanos tenham apoiado uma revolta republicana no Pernambuco em 1817 - o mesmo não pode dizer a Espanha que viu os americanos tirarem-lhe em 1898 Cuba, Porto Rico e Filipinas, o que ainda restava do antigo império de Filipe II.

E se Portugal esteve no lado dos Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial, na Segunda a neutralidade não impediu Salazar de ceder as Lajes primeiro aos britânicos e depois aos americanos. Uma vez mais ao contrário de Espanha, então sob Franco, Portugal foi convidado a ser um dos fundadores da NATO, consolidando a posição como parte do bloco ocidental que nem o espírito revolucionário de 1974-1975 conseguiu pôr em causa, mérito de Mário Soares e, nos bastidores, do embaixador Frank Carlucci, o tal que convenceu Kissinger (e o presidente Gerald Ford) de que Portugal não estava perdido para os comunistas e condenado a ser satélite soviético. Na altura houve quem ameaçasse com a secessão dos Açores, mas o portuguesismo das suas gentes sempre falou mais forte do que as lógicas da Guerra Fria.

Portugal orgulha-se da sua diplomacia e de ser capaz de ter boas relações com a Rússia ou a China. Se assim não fosse, e por muitos méritos que tenha António Guterres, seria impensável um português ser eleito secretário-geral das Nações Unidas. Por baixo da mesa, um dos cinco com direito de veto no Conselho de Segurança, teria destruído qualquer favoritismo do antigo primeiro-ministro. Mas a opção estratégica portuguesa é o atlantismo, perfeitamente conciliável com o europeísmo. E se houvesse algumas dúvidas sobre essa vocação histórica, o atual ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, fez questão de as desfazer depois de o embaixador americano escolhido por Obama, Robert Sherman, ter expressado preocupação com a geringonça que apoiava o governo socialista ter dois partidos anti-NATO. Referindo a "participação na NATO", a "centralidade dos Açores no espaço norte-atlântico" e "o enorme poder de alavancagem representado pelos portugueses e lusodescendentes que vivem na América do Norte", o ministro dos Negócios Estrangeiros defendeu o reforço da relação bilateral com os Estados Unidos num discurso de abertura do Seminário Diplomático. Estávamos em janeiro de 2016.

George Glass, a escolha de Trump para embaixador em Lisboa, tem tido outras preocupações que o PCP e o Bloco de Esquerda. É sobretudo contrariar a Huawei e a tecnologia 5G controlada por uma empresa chinesa que o tem feito insistir na necessidade de Portugal ser fiel aos compromissos com o seu parceiro americano. Mas jamais foi ao ponto de duvidar da solidez da aliança entre Portugal e os Estados Unidos, aquela tão antiga como o reconhecimento da independência por D. Maria I, tão antiga como o consulado nos Açores, tão antiga até como esse miúdo açoriano que se tornou no Hércules da Virgínia e dele dizia George Washington ser o seu melhor soldado.

Marcelo Rebelo de Sousa quando se encontrou com o presidente Trump na Casa Branca fez questão de sublinhar e bem essa antiguidade da amizade entre os dois países. E até relembrou que a Declaração de Independência de 1776 foi brindada com vinho português, neste caso de outro arquipélago, o da Madeira. Podia ter dito também que navegadores portugueses foram pioneiros nas duas costas dos Estados Unidos e que João Rodrigues foi o primeiro não índio a viver em Manhattan, onde fica a mais famosa das Trump Towers.

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