"Não é uma atriz, é o teatro": A lição de Eunice, no seu 75.º aniversário de palco
Foi recebida com uma ovação de pé. Eunice Muñoz pisava o palco onde se havia estreado há 75 anos, a 28 de novembro de 1941. Ontem com 88 anos, num Teatro Nacional D. Maria II (TNDM) cheio, então com 13 anos. É a menina - "disfarçando muito mas cheia de medos" - a quem Amélia Rey Colaço, que viria a tornar-se sua mestre, disse antes do pano levantar: "Mas ela não tem os laços." Eunice pôs os dois laços no cabelo e passaram-se 75 anos desde a estreia na peça Vendaval, de Virgínia Vitorino. Pelo que fez e foi nesses anos, tinha ontem uma plateia de jovens atores, velhos colegas, e o público de sempre à frente, para escutar a sua lição.
"Lição nenhuma. Por amor de Deus, fico logo enfiada se me dizem isso. Não estou aqui para ensinar ninguém. Quando muito para falar um pouco da minha vida", dizia a atriz aos jornalistas antes de subir ao palco ao lado do colega, amigo e discípulo Diogo Infante, que conduziu a conversa daquela "lição nenhuma" ao longo da vida e da carreira de Eunice, nome "cá de casa", pelo qual o país a trata.
Mas o dia não seria apenas feito de memórias. Antes do começo da lição, Tiago Rodrigues, diretor do TNDM, anunciaria que Eunice regressaria àquele palco em setembro do próximo ano para representar o Rei Lear, de Shakespeare. E, encenada por Bruno Bravo, será ela o próprio Lear. Um sonho antigo que é assim retomado por uma Eunice que, num passado recente, sobreviveu a uma violenta queda naquele mesmo teatro, a um tumor na tiroide que lhe tirou a voz que ela agora, aos poucos, recupera, e a uma operação ao coração. Tudo isso, afirmava aos jornalistas, deu-lhe "uma paz muito grande". "Eu hoje dificilmente me aborreço com alguma coisa. Ainda hoje estava a arranjar-me e a pensar nisso. 'Pronto, paciência, vá, leva mais tempo, leva menos tempo.' Sinto-me em paz, sabe?
Uma personagem que lhe apareça no quotidiano? "Zerlina", responde prontamente ao DN, como se ainda havia minutos tivesse pensado outra vez naquela personagem que interpretou em 1988, na peça homónima, dirigida por João Perry. Na lição, Diogo Infante haveria de lhe pedir que recordasse "dois ou três trabalhos" que a tivessem marcado. E de novo apareceu Zerlina, ao lado de Mãe Coragem e Seus Filhos (1986), O Caminho para Meca (1995), dirigida por João Lourenço, e - vira-se para Diogo Infante -: "A nossa, era muito difícil, fiquei muito contente." Referia-se a O Ano do Pensamento Mágico, encenada por ele em 2009 naquele mesmo palco.
Afirma que ainda hoje pensa nos mestres que teve. "O que apanhei de cada um deles. Uma ladra, uma ladra..." Um deles surgiu ontem mais do que uma vez em conversa: "o mestre Ribeiro, grande mestre." Francisco Ribeiro (Ribeirinho). Ele que dizia daquela mãe de seis filhos: "Esta mulher só tem filhos, só tem filhos. Não posso contar com ela." Eunice ri-se com a recordação.
75 anos. "Agora olho para isso como qualquer coisa que já foi. É como um pequeno filme. É isso que eu sinto. Voltar a fazer teatro é uma coisa que me enche de satisfação. Dá alguma angústia, mas é um sonho, uma necessidade", respondeu a Diogo Infante. Recentemente foi anunciado que Eunice não representaria na peça de Filipe La Féria As Árvores Morrem de Pé, em cena no Teatro Politeama. Agora, em janeiro começará a moldar-se a Lear, a tornar-se nele. A ser atriz com ele. Coisa que, contou ontem, só se sentiu a partir do momento em que fez de Joana d~'Arc, aos 27 anos. "Antes disto era uma coisa de fatalidade. Os meus pais são [cresceu num teatro ambulante, em que participou desde os cinco anos], os meus tios são, e eu também sou... Não era tão convicto, não era tão sério."
Os jovens estudantes de teatro perderam, relutantemente, a vergonha. E então Hugo, por exemplo, perguntou a Eunice Muñoz por que faz o que faz. "Porque somos sonhadores, para começar", respondeu. Selma perguntou-lhe como controla os nervos. "Tenho muitos. É preciso aprender a contorná-los. Para começar, rezo sempre." Eunice era da idade de muitos deles quando, aos 23 anos, deixou os palcos para trabalhar numa fábrica de material elétrico. "Queria tanto conhecer outras pessoas, o que elas faziam, o que elas pensavam, os seus problemas", lembrava aos jornalistas. Voltou aos 27. Foi Joana d'Arc e depois disso foi tanta coisa. Em setembro será Lear.
Na plateia estava a neta Lídia, atriz. "A avó não é uma atriz, é o teatro", lançaria. E Eunice saiu do palco como entrou: com uma ovação de pé.