Nabila Hamza entra na sala do hotel onde vai decorrer a entrevista, apresenta-se e diz estar muito cansada. Para trás ficou a cerimónia na Assembleia da República, onde recebeu do Presidente da República o Prémio Norte-Sul do Conselho da Europa (o outro premiado foi o presidente da Câmara de Palermo, Leoluca Orlando). Pede um café, e assim que começa a falar em francês, com frases em espanhol e expressões em inglês pelo meio, sobre o seu país e os temas que lhe são caros, não transparece vestígios de fadiga..Do trabalho junto dos migrantes subsarianos como autarca aos direitos das mulheres, do papel do pai da Tunísia independente ao combate ao islamismo, a socióloga e ativista irradia energia. O café fica largos minutos esquecido..Pergunta-se que significado tem uma moldura no seu escritório, no qual está ao colo do primeiro presidente da Tunísia, Habib Bourguiba. Recorda que o pai, funcionário público, "um patriota", ficou "muito contente" quando soube que o presidente ia visitar a cidade onde viviam, Sousse. A mãe, que não era costureira, foi comprar tecido vermelho e branco, as cores da bandeira, para fazer vestidos para as três filhas mais pequenas (das sete meninas e dois meninos). "Não sei como o fiz, mas consegui escapulir-me entre milhares de pessoas, subi os degraus e atirei-me aos seus pés. Ele pegou em mim, abraçou-me e sentou-me ao seu colo. E toda a gente tirou uma foto!".Filha de um pai tolerante e de uma mãe nada submissa, Nabila Hamza cresceu sob valores de abertura e o orgulho do momento com Bourguiba deu lugar a outros sentimentos. Começou por ler Simone de Beauvoir e "tornou-se feminista mesmo antes de encontrar a palavra, foi uma identidade que se desenvolveu"..Já na idade adulta começou a militar num partido de esquerda, e mais tarde, já a estudar em França, tornou-se maoísta. A desilusão deu-se ainda nos anos de 1970, porque esses movimentos diziam que a igualdade de género era uma questão secundária, a tratar quando o socialismo estivesse implantado. "Como muitas outras, saí na altura do partido e considerei que a causa das mulheres necessitava de um movimento não misto e independente dos partidos, com uma agenda precisa, na qual se reivindica a igualdade total dos homens e das mulheres, seja qual for a sua ideologia.".E, apesar dos direitos reconhecidos na Tunísia, há ainda um caminho a percorrer, como é o caso do direito das sucessões, onde as mulheres continuam a ser discriminadas nas heranças devido à influência religiosa..Outro exemplo é o da presença das mulheres em cargos dirigentes, caso dos sindicatos: há 78% de mulheres no setor têxtil e o setor da educação é também composto por uma maioria feminina, mas nos cargos dirigentes continuam os homens.."Fui opositora de Bourguiba como todos os jovens na época, porque ele era um ditador, embora fosse um ditador esclarecido. Mas com o tempo, eu e as pessoas da minha geração, mas também mais novos, demo-nos conta de que Bourguiba é em primeiro lugar um símbolo da independência, mas é também o símbolo da abertura. Foi um feminista antes do tempo. Há que reler os discursos de Bourguiba nos anos 60, nos quais apela ao feminismo de Estado, é alguém imbuído de uma crença profunda na igualdade e dignidade das mulheres. É alguém que começa por mudar o Código da Família antes do anúncio da proclamação da república: interdita a poligamia e penaliza-a, o casamento passa a ser civil e não antes dos 18 anos, a mulher escolhe com quem se quer casar, e em 1964, antes da França, o aborto é legalizado.".Destaca também o seu papel em levar a educação a todas as crianças e o planeamento familiar a todo o país. "Se assim não fosse, hoje seríamos 25 a 30 milhões de tunisinos", diz..Em conclusão: "Até os opositores da época reconhecem-lhe hoje a sua estatura, a abertura, cultura e carisma", pelo que o considera não só o "pai da pátria", mas também o "pai da modernidade, da laicidade e da abertura em relação ao mundo"..Nabila Hamza trabalha desde 2018 ao nível local, primeiro como adjunta do presidente da Câmara de Marsa, depois como vice-presidente, e agora, após uma reorganização administrativa, é presidente da Comissão das Mulheres, da Família e Migrantes.."A Tunísia está em transição democrática. Está a sair de uma grande centralização porque estava na prática numa ditadura, onde os presidentes das câmaras eram nomeados pelo presidente da República. Por isso 2018 foi para nós um ano decisivo na democracia local: organizou-se pela primeira vez eleições livres, plurais e democráticas", diz..Sem partido político, deixou-se contagiar pela "enorme efervescência" que resultou na criação de listas independentes. "Numa lista de 30 pessoas concorri ao município de Marsa contra a gestão e contra a construção anárquicas, pela preservação do domínio público e pela integração dos imigrantes", conta..A pandemia, além dos problemas económicos que agravou na Tunísia, com o aumento de desemprego e a estagnação, deixou os imigrantes "que viam a Tunísia como um trampolim para a Europa", numa situação ainda mais frágil. Os migrantes e refugiados são oriundos da Costa do Marfim, dos Camarões, do Congo, uns de forma direta, outros fugidos da guerra na Líbia..A situação obrigou a que o Estado tunisino olhasse de forma mais séria para os direitos dos migrantes, que eram apenas tolerados, e permitiu "reforçar a cooperação" com a Organização Internacional de Migrações e com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados e um trabalho com organizações não governamentais africanas que nasceram durante a crise.."Nem tudo é negativo", diz, elencando que no seu município se conseguiu dar formação a migrantes, abrir um gabinete dos Médicos do Mundo e facilitar a entrada dos mais pequenos na escola..A imolação do vendedor ambulante Mohamed Bouazizi, que veio a desencadear a revolução tunisina e a chamada Primavera Árabe, aconteceu há quase dez anos. Que balanço faz Nabila Hamza? Começa por dizer que a Tunísia vive uma "transição lenta e difícil, com muitos problemas económicos, sociais e políticos". Do lado positivo enumera a democracia, com eleições legislativas, presidenciais e municipais livres e a abertura da imprensa..Com a votação de uma nova Constituição, em 2014, entrou em vigor a lei fundamental "mais progressista do mundo árabe, que separou o religioso do político, que inscreve a igualdade total entre homens e mulheres, que reconhece a liberdade de consciência". Além da pluralidade inscrita na lei, destaca a "explosão da sociedade civil, incluindo associações LGBTQ"..Do lado negativo, "a Tunísia atravessa dificuldades enormes ao nível do emprego, com regiões a atingir os 25%", situação agravada com a pandemia. Mas o que mais a preocupa é a "gangrena do islamismo político". Sustenta: "Além dos aspetos ideológicos de apoio ao terrorismo, ao fanatismo, etc., os seus dirigentes são pessoas vindas da prisão e que nunca exerceram o poder. Quando saíram da prisão exigiram trabalho, tendo entrado na administração pública. Foi uma catástrofe", comenta..A qualidade dos recursos humanos do país está também em risco. Em 2019, a Tunísia perdeu 450 médicos, que emigraram. "Não sendo o país rico em recursos naturais, penso que talvez a Tunísia devesse receber apoio, em particular da Europa. Uma crise como a que estamos a viver a somar à dívida enorme, se querem salvar o único processo democrático no mundo árabe, deveriam converter a dívida, entre outras coisas, um plano, enfim. Porque a democracia tunisina está ameaçada por tentativas de abortar o processo democrático.".Licenciada em Sociologia na Universidade de Ciências Sociais de Tunes, onde fez uma pós-graduação em História Contemporânea, obteve depois um mestrado em Ciências Políticas na Sorbonne (Paris) e uma pós-graduação em Métodos Quantitativos na Universidade Autónoma de Santo Domingo (República Dominicana)..Coordenou diversos programas internacionais no seu país, mas também no Magrebe e no Médio Oriente, nas áreas da igualdade de género, participação cívica, democracia e transparência. Durante sete anos foi presidente da Foundation for the Future, uma organização em prol da democracia, dos direitos humanos e do Estado de direito na região do Médio Oriente e do Norte de África. Antes foi diretora executiva do Centro de Formação e Investigação de Mulheres Árabes (CAWTAR), baseado na Tunísia, e especialista principal na Liga Árabe. Foi também chefe de equipa do programa Diálogo Med para os Direitos e Igualdade, financiado pela União Europeia..Em 2011 recebeu o Prémio Árabe dos Direitos Humanos, pelo Centro Árabe-Europeu de Direitos Humanos e Direito Internacional.