Na ressaca do assalto ao céu

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Lenine foi buscar de empréstimo a Marx, num texto por este dedicado à Comuna de Paris (1871), a expressão usada para batizar a Revolução que hoje completa um século (25 de outubro de 1917, no calendário juliano da Rússia czarista): O Assalto ao Céu (Angriff auf den Himmel). Em todo o mundo, começando pela Rússia, a escassez das comemorações merece alguma reflexão. Um século depois da Revolução Francesa, o seu apelo universalista estava intacto, e até o Terror era minimizado, tal o desejo de os franceses a integrarem no seu consenso nacional. Pelo contrário, a um século de distância, a herança de 1917 destaca-se pela amargura e o niilismo. Que para os russos de hoje o grande herói sobrante desse período seja Estaline, talvez o maior torcionário da história universal, é tristemente sintomático. Sob qualquer ângulo que se escolha, 1917 pulveriza tudo aquilo em que toca. Uma das coisas que a Revolução Russa (RR) destruiu foi a possibilidade de olharmos para o marxismo com isenção crítica. Contudo, a mente fina de um marxista livre, Antonio Gramsci, percebeu o que estava em causa poucos dias depois da tomada do Hermitage: "A revolução dos bolchevistas (...) é a revolução contra O Capital de Karl Marx. O Capital de Marx, na Rússia, era mais o livro dos burgueses do que dos proletários. Era a demonstração crítica da fatal necessidade que na Rússia se formasse uma burguesia (...), se iniciasse uma era capitalista, se instaurasse uma civilização de tipo ocidental antes que o proletariado pudesse sequer pensar na sua desforra (...), na sua revolução." (Antonio Gramsci, "Escritos Políticos I", Seara Nova, 1976, 161-2). A RR nasceu de uma eclética mistura doutrinária de que o marxismo é apenas um dos ingredientes. Sobressai sobretudo um voluntarismo indómito, capaz de dispensar a gravidade dos factos, aliado a uma banalização instrumental da violência, bem enraizada na tradição política russa. Para Lenine isso era uma espécie de normalidade. O seu irmão mais velho pagara com a vida pela participação num atentado falhado contra o czar Alexandre III, em 1887. Não surpreende que Lenine tenha desenvolvido uma teoria militarista de Partido, trazendo sempre por perto uma cópia do Da Guerra, de Carl von Clausewitz. Paradoxalmente, uma das forças da RR foi a sua promessa de paz. Para milhões de soldados e civis fustigados por anos de carnificina e fome, a violência estava do lado dos seus governos e generais, não dos intelectuais bolcheviques que prometiam a paz. Os sinais de aviso começaram de maneira grotesca. Um dos maiores problemas que Lenine e Trotsky tiveram de enfrentar foi uma orgia de alcoolismo iniciada na própria guarnição de Petrogrado. Antonov-Ovseenko, comissário do Exército, fez o relato mais vivo de como a peste de vodca se estendeu, com epicentro nas adegas do czar, a toda a capital e arredores, durando até meados de dezembro. O voo da RR chocou contra as portas do céu. Estatelou-se contra a apatia de uma sociedade rural, pobre e analfabeta. Os bolcheviques, depois de dissolverem a Assembleia Constituinte, começaram por eliminar os seus aliados táticos, transformaram os sovietes num cadáver útil e, por fim, depois de vencida a Rússia Branca, começaram a devorar-se a si próprios na monstruosa fábrica de Terror gerida por Estaline. Um número obsceno de vítimas sacrificou-se na pira da RR, que chegou a ter dimensão universal, antes de cair na órbita do nacionalismo grão-russo, disfarçado em "socialismo num só país". Um século depois, esse colossal sofrimento continua sem encontrar um sentido que o possa redimir.

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