"Na prática, já estamos na quarta onda e Lisboa é o motor"
No dia 12 de junho, Lisboa atingiu os 254 casos por 100 mil habitantes e a tendência é para continuar a crescer. O professor Carlos Antunes, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, diz que a estratégia de testagem já não está a funcionar e que já há sinais de que se está a perder o controlo da situação. E à questão colocada pelo DN sobre se Lisboa está a ser o motor para uma quarta onda pandémica, Carlos Antunes, que integra a equipa que desde o início da pandemia faz a modelação da evolução da doença, é perentório: "Na prática já estamos numa quarta onda pandémica, porque a fase que estamos a viver já está com uma amplitude e um comprimento semelhante à onda de março do ano passado, que se estendeu até maio."
Aliás, "a situação que vivemos agora já é muito superior à de junho do ano passado. Está com uma amplitude em que a tendência é para ultrapassar o máximo alcançado em março, abril e maio do ano passado, e deverá ter um comprimento até julho", sustenta. Acrescentando: "No dia 15 de junho do ano passado, o país registou 400 novos casos. No mesmo dia deste ano, 973, devendo estar agora com uma média de 820 por dia", explica. O boletim diário da Direção-Geral da Saúde (DGS) de ontem dava conta de 973 novos casos de covid-19, só 614 na região de Lisboa e vale do Tejo, que continua a ter mais de 60% dos casos de todo o país. E como sublinha o professor "o R(t) em Lisboa é de 1.13 e no país de 1.12. O norte está em 1.02 e o Alentejo e o Algarve também já estão com 1. O continente está todo com um R (t) acima de 1 e Lisboa é que está a contribuir para o bolo nacional".
Para o pneumologista Carlos Robalo Cordeiro, do gabinete de crise da Ordem dos Médicos, os dados vindos da região de Lisboa são preocupantes. Aliás, reforça, na capital "há fatores que formam um verdadeiro cocktail explosivo e se o contágio continuar a aumentar da forma como está agora, contamina-se o país todo".
O diretor da Faculdade de Medicina de Coimbra não fala numa quarta onda, mas admite que "se está a correr esse risco. Estamos a viver o mesmo risco que corremos no ano passado nesta altura, em que Lisboa foi também um foco de aumento de casos". E alerta: "Há uma grande preocupação que tem que ver com o aumento significativo da variante Delta, originária da Índia, que muito em breve se tornará predominante na região de Lisboa, e é uma variante que sabemos ter maior risco de contaminação do que as outras que já circulavam no país" - até mais do que a do Reino Unido que ainda é predominante a nível nacional.
O certo é que os dois especialistas concordam que se o governo não tomar já na próxima reunião de Conselho de Ministros, agendada para quinta-feira, medidas no sentido de fazer retroceder a capital para a terceira fase do desconfinamento, de forma a travar a mobilidade de pessoas, evitando situações de maior contacto, "estamos a perder tempo", defendem.
Destaquedestaque"No dia 15 de junho do ano passado, o país registou 400 novos casos. No mesmo dia deste ano, 973, devendo estar agora com uma média de 820 por dia", explica Carlos Antunes.
No fim de semana, Lisboa ficou acima dos 240 casos por 100 mil habitantes, mas ontem já deveria estar nos 280, o que, segundo o critério definido pelo governo, se tal situação se mantiver durante duas semanas, determina o retrocesso. Mas, e como referem os especialistas, nesta pandemia já se percebeu que "quanto mais cedo se atuar, melhor".
Carlos Robalo Cordeiro dá como exemplo a situação no Reino Unido, que decidiu adiar o desconfinamento para 21 de julho, precisamente "porque está com uma situação muito semelhante à nossa no que toca ao aumento de casos e da variante Delta".
Do lado do governo, o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, coordenador para o combate à pandemia na região de Lisboa e vale do Tejo, lembrou ontem que "as regras atuais ditam um retrocesso se um concelho ultrapassar os 240 casos novos por 100 mil habitantes a 14 dias, durante duas semanas, ou a manutenção das regras, caso o limite de 120 casos seja repetido em duas semanas". Na região, em alerta estão Lisboa, Sintra, Amadora, Cascais e Odivelas, tendo Duarte Cordeiro admitido ser preciso aumentar ainda mais a testagem para "conter os surtos".
Carlos Antunes dá como exemplos duas situações nacionais, as dos concelhos de Sesimbra e de Odemira. "Em Sesimbra, foram as autoridades, nomeadamente a autarquia, que tomaram a iniciativa de antecipar a decisão, pedindo ao governo para o fazerem, depois de terem observado que o crescimento de casos foi galopante em oito dias de quase 100 casos por 100 mil habitantes passaram para mais de 300. Perceberam que tinham de tomar essa decisão. Em Odemira, que foi dos concelhos que teve mais restrições na fase de desconfinamento, duas freguesias ficaram em cerca sanitária e conseguiram baixar dos 240 casos por 100 mil habitantes, mas a pressão da opinião pública era tão grande que o resto do concelho continuou a desconfinar e a incidência aumentou, depois houve a classificação de concelhos de baixa densidade, onde foi colocado e o que temos agora é uma incidência de 580 casos por 100 mil habitantes. Isto é o que pode acontecer senão anteciparmos a decisão para Lisboa recuar no desconfinamento".
O professor da Faculdade de Ciências justifica esta decisão com o facto de "a estratégia de testes já não estar a resultar. Os testes estão a diminuir e a positividade a aumentar. Isto é um sinal de que estamos a perder o controlo".
Por outro lado, argumenta ainda, e de acordo com os dados disponibilizados no relatório de Linhas Vermelhas, publicado na sexta-feira, "há 125 rastreadores no país, cada um tem capacidade para receber seis novos casos por dia para os isolar rapidamente e fazer todos os contactos possíveis para quebrar as cadeias de transmissão. Ao fim de 10 dias, cada um tem 60 novos casos, ao fim de 20 dias, 120 novos casos e já começa a haver um sinal de pressão nesta área. Os 125 rastreadores que num dia conseguem fazer os contactos de 750 casos já estão a lidar com mais. Como disse a média é de 820 casos por dia. Isto também é um sinal de que estamos a perder o controlo e a única forma de reduzir o contágio é reduzir os contactos. É o que se deve fazer em Lisboa e isso implica diminuir a mobilidade e as atividades que levem a um aumento de ajuntamentos no espaços exterior e interior". O especialista sublinha que, desta forma, e como o refere o relatório das Linhas Vermelhas, já se está a deixar para trás 17% dos contactos dos novos casos.
O representante da Ordem dos Médicos, Carlos Robalo Cordeiro, defende também: "Nesta semana deviam ser tomadas já medidas para se travar a situação em Lisboa. É preciso que as pessoas avaliem todos os indicadores, além da incidência e da transmissibilidade, a taxa de vacinação completa, a de testagem, a da positividade, o número de pessoas vacinadas que estão internadas com covid-19."
O médico de Coimbra considera que a situação que se está a viver em Lisboa não é comparável à do resto do país, porque a capital reúne uma série de fatores que "são um verdadeiro cocktail explosivo. É a região com maior densidade populacional do país, não nos podemos esquecer de que um terço da população do país vive aqui, é a região com maior mobilidade de pessoas, que se movimentam em transportes, que têm o maior aeroporto do país, que recebe mais turismo, etc. Portanto, a situação que se vive aqui, mesmo em termos de pressão das unidades de saúde, não é igual à do resto do país. Todos os dias falamos com colegas de hospitais da Lisboa que nos dizem que já estão a abrir mais enfermarias, que já estão alocar mais profissionais de outras áreas para fazer funcionar essas enfermarias", o que só por si justifica a antecipação de medidas.
Carlos Cordeiro relembra também ser esta a região com maior número de surtos que surgiram de reuniões familiares, festas e outros eventos com grandes aglomerados de pessoas. Mas a juntar a tudo isto "há um problema adicional que é a variante indiana e a taxa de vacinação completa. Por exemplo, para quem fez apenas uma dose da AstraZeneca tem apenas 30% de proteção, sobe para 70% ou 80% com a segunda dose. A vacina da Pfizer dá uma proteção de 90%, mas, neste momento, há bastantes pessoas internadas com vacinação completa e é preciso que se olhe para este fator".
DestaquedestaqueNa matriz de risco proposta pela Ordem, a tomada de decisões baixou para o sétimo dia de uma incidência de 240 casos por 100 mil habitantes. "É mais sensato se tivermos em consideração o que se está a passar no momento."
Ou seja, neste momento, "a gravidade da doença não é igual à que tivemos no início do ano, felizmente a vacinação alterou isso, mas, na região de Lisboa começa a verificar-se algum peso em termos de gravidade. A nível hospitalar há um movimento de internamentos que não se regista no resto do país e não se deve desvalorizar esta situação".
Por fim, o médico sustenta que, na matriz de risco proposta pela Ordem, a tomada de decisões baixou para o sétimo dia de uma incidência de 240 casos por 100 mil habitantes. "É mais sensato se tivermos em consideração o que se está a passar no momento. Veja Lisboa: está com uma situação muito significativa de transmissibilidade e de incidência, de internamentos também, com aumento significativo da variante Delta. É preciso que se avaliem todos os indicadores porque Lisboa é um epicentro de contágios."
A decisão está agora na mão do Governo., mas não é fácil fazer a capital regredir. Há duas semanas o professor Carlos Antunes dizia ao DN que Lisboa poderia arriscar ir até aos 240 casos por 100 mil habitantes, antes de tomar medidas mais restritivas. Agora, esta tese passou à história. A capital vai a caminho dos 300 casos por 100 mil habitantes e a tendência é para continuar a crescer. Os números que agora estão em cima da mesa são bem mais elevados do que os do ano passado, mas a quarta onda, a qual tanto se receava antes do início do desconfinamento, está aí e os especialistas esperam que não se comentam mais erros.