Na intimidade da música de Jeanne Balibar
Insólita dinâmica desta nossa situação de sermos espectadores de cinema em casa. Ou melhor: espectadores caseiros de filmes. De facto, subitamente, aquilo que vulgarmente suscita as mais variadas resistências e preconceitos, adquire prestígio de novidade ou, pelo menos, de curiosidade que vale a pena descobrir. Os filmes a preto e branco, por exemplo. Quantas vezes ouvimos a ideia (?) segundo a qual o preto e branco é uma opção "ultrapassada" ou mesmo historicamente "irrelevante"?
Pois bem, numa das plataformas digitais de cinema (Filmin) encontramos uma sugestiva zona de 15 títulos reunidos sob a bandeira de "Preto e Branco Rebelde". Convenhamos que a designação não será muito feliz... mas é um facto que lá podemos ver pérolas algo esquecidas como Control (2007), o retrato de Ian Curtis, dos Joy Division, assinado por Anton Corbijn, ou Ida (2013), o drama histórico de Pawel Pawlikowski que valeu à Polónia um Oscar de melhor filme estrangeiro.
E lá está também um belo documentário de Pedro Costa, tanto mais estimulante quanto desafia, ponto por ponto, muitas convenções do género documental: chama-se Ne Change Rien (2009) e acompanha a atriz e cantora francesa Jeanne Balibar em diversas performances e ensaios.
À partida, trata-se de cumprir as regras de um didático exercício de informação & descoberta. Através de uma relação de amizade envolvendo Philippe Morel, diretor de som que também trabalhou no filme, Jeanne Balibar e Pedro Costa foram partilhando momentos privados e públicos de preparação e interpretação de diversas canções (o filme colhe o seu título no título de uma dessas canções). Mas não estamos perante um vulgar "making of". Acedemos a um espaço de intimidade em que as canções podem apresentar-se como objetos acabados, podendo também expor-se enquanto projectos em trânsito, integrando as mais diversas dúvidas e hesitações.
Dir-se-ia que deparamos, assim, com a vulnerabilidade do próprio labor criativo, de alguma maneira intensificando a sua dimensão humana. Num texto publicado na altura do lançamento do filme (cuja estreia mundial ocorreu em Cannes, na Quinzena dos Realizadores de 2009), Jeanne Balibar caracteriza de forma exemplar a sua aventura estética, neste caso partilhada com a câmara de Pedro Costa: "Fazer música, para mim, contém sempre uma maravilhosa promessa de abandono. Talvez como a criança que levada pelo amor, por um olhar, por uma atenção (o ritmo, a melodia, a harmonia) abandona os braços da mãe para caminhar sozinha no vasto mundo, com o espírito livre e o corpo liberto."
* * * * [ Muito bom ]