O cogumelo atómico "muito bonito" resiste na memória de alguns habitantes de Semei, sobretudo contado pelos pais e avós que viviam sem saber de nada nas aldeias próximas do polígono de Semipalatinsk, onde a União Soviética testou 456 bombas nucleares. Mas a cratera criada pela primeira explosão, a 29 de agosto de 1949, continua aqui, mal disfarçada pela vegetação da estepe cazaque. Assim como continuam os altos níveis de radioatividade, com o contador a apitar com insistência, apesar das garantias de Amir Kayirzhanov que são normais..O técnico do Centro Nuclear Nacional do Cazaquistão (NNC), vestido com um fato especial branco e com máscara para respirar, obrigatório também para os jornalistas, lá acaba por explicar que "normais" quer dizer 15 vezes mais do que seria admissível numa cidade. A mais próxima é Kurchatov, onde vivem os cientistas ainda hoje ligados à vontade de investigação nuclear, agora para fins pacíficos.."Kurchatov é o nome do grande cientista que iniciou o programa nuclear", explica Vladimir Vityuk, secretário científico do NNC, ainda no museu que conta como aqui a União Soviética se pôs a par dos Estados Unidos quatro anos depois de Hiroxima e Nagasáki. Há neste museu uma reprodução do gabinete de trabalho de Kurchatov, onde se vê um velho gira-discos, livros diversos em russo, também uma fotografia de Lenine. E sobre a secretária um livro de honra para os visitantes escreverem algo: Nursultan Nazarbaiev, pai da independência do Cazaquistão em 1991 e até este ano presidente da República, foi um dos que deixaram mensagem. Também Ban Ki-moon, o sul-coreano que antecedeu António Guterres como secretário-geral da ONU, deixou lá um apelo à não proliferação. Mas os cazaques hoje querem bastante mais: são signatários do tratado que visa proibir todas as armas nucleares. "Há um grande consenso na sociedade cazaque na renúncia às armas nucleares", diz Murat Umarov, diretor executivo do Instituto de Segurança Radioativa, parte do NNC. Desde que o arsenal nuclear soviético que estava em território cazaque foi transferido para a Rússia, há mais de duas décadas, o NNC dedica-se a perceber melhor a potencial utilização pacífica da tecnologia (não funciona atualmente nenhuma central nuclear no país) e também o efeito sobre as populações do quase meio milhar de testes realizados. Basta pensar que o próprio Kurchatov terá morrido aos 57 anos debilitado pelas radiações para se perceber que pelo menos nos primeiros tempos era escassa a noção do risco. E o local foi escolhido por ser quase despovoado, o que não significa que não houvesse aldeias e que de alguma forma mesmo a cidade de Semipalitinsk, hoje Semey, fosse afetada, embora a 150 quilómetros..É famoso o pintor cazaque Kuriakov, que nasceu sem braços e que conta que a mãe viu vários cogumelos atómicos. Num lar para idosos de Semey, onde se homenageia numa sala com vitrinas recheadas de medalhas os que combateram na Segunda Guerra Mundial e ali passaram os últimos anos de vida, vive ainda alguém com idade para reivindicar ter presenciado o teste de 1949: "Foi uma luz enorme. Nunca tinha visto nada assim. A União Soviética não queria ficar atrás da América e foi a América que começou tudo", diz Oshybayev Otegen, de chapéu tradicional cazaque, agarrado a um andarilho, excitadíssimo com o que está a dizer, como se os jornalistas presentes pudessem ser as derradeiras testemunhas das suas recordações. No lar, alguns dos idosos têm deformações, um deles um rosto onde olhos, nariz e boca se confundem. Mas ninguém se atreve a dizer que esta ou aquela deformidade é consequência direta dos testes nucleares. Quando muito, como faz Tolkyn Bulegenov, professor na Universidade Médica de Semey, "pode dizer-se que as doenças oncológicas têm nesta região uma incidência 10% a 15% superior ao resto do país". Na universidade, um pequeno museu de patologia parece uma sala dos horrores: em frascos com formol estão vários fetos, alguns com crânios enormes, outros sem membros, uns siameses. De novo a mesma ideia: "Não há documentos a historiar estes casos e, portanto, não se pode dizer que resultam disto ou daquilo. Desta vez, é Yana Milyushina, professora de patologia, a ser muito clara, mesmo que a ideia das consequências do nuclear estejam muito enraizadas nesta cidade que foi um posto avançado da colonização das terras cazaques pelo Império Russo no século XIX e onde o romancista Fiódor Dostoiévski chegou a prestar serviço militar, ali tendo escrito dois livros. Retomemos a discrição da ida até ao ponto das detonações. Hora e meia de carro por uma estrada de terra batida. Em redor, tudo plano. O solo está coberto por ervas acastanhadas, já meio secas, ilhotas de mato rasteiro verde surgem de vez em quando, de árvores nem sinal, a não ser que assim chamemos ao ocasional arbusto mais alto, um metro ou metro e meio no máximo. Comenta um jornalista japonês do grupo que "até se ver a estepe pode imaginar-se mas não se chega nem perto do que ela é mesmo". Não é a sua primeira vez no Cazaquistão, pois, por causa de Hiroxima e de Nagasáki, o novo país da Ásia Central e o Japão partilham muita informação sobre o nuclear, sempre numa perspetiva pacífica. "A diferença, quando se fala de doenças, é que nas cidades japonesas a explosão foi uma só em cada. Aqui sucederam-se durante décadas", já tinha sublinhado Murat Umarov, do NNC. Olho para a cratera do tal teste original, que Estaline batizou de Primeiro Relâmpago. Foi uma explosão com a mesma carga destrutiva da Fat Man lançada em agosto de 1945 pelos americanos sobre Nagasáki, forçando finalmente o imperador japonês a anunciar a rendição ao povo. Em redor do antigo epicentro nuclear, restos de edifícios em betão e uma ponte ferroviária. Lembro-me de um gráfico que vi duas horas antes no museu. Em torno do epicentro, alinhavam-se, como se fossem uma rosa dos ventos, edifício civis, instalações militares, tanques de guerra, aviões, até várias espécies de animais. Afinal, mais do que estudar a potência da bomba, o que os cientistas queriam perceber, e dar a conhecer às chefias militares, era o impacto destrutivo da explosão. E uma fileira de câmaras altamente resistentes filmavam tudo..Nazarbaiev, que já era o secretário-geral comunista no tempo do Cazaquistão soviético, explicou depois porque foi tão convicto na renúncia ao nuclear, tendo o seu país em 1991 aquele que seria o quarto maior arsenal: argumentou que manter um programa nuclear exigiria recursos financeiros que o Cazaquistão independente deveria antes dedicar ao seu desenvolvimento. E conseguiu, pois, não só reservar o dinheiro do petróleo para os fins prioritários, como obteve dos Estados Unidos e da Rússia apoio científico e económico para desmantelar o Polígono de Semipalatinsk, selando em túneis o lixo radioativo. E passou a ser uma bandeira da política externa cazaque o combate à proliferação e agora em prol da destruição total das armas nucleares..A 29 de agosto, nos 70 anos exatos do Primeiro Relâmpago, foi entregue em Nur Sultan o Prémio Nazarbaiev pela proibição das armas nucleares, ganho a título póstumo pelo japonês Yukiya Amano, que era diretor da agência internacional da energia atómica, e também pelo burquinês Lassina Zerbo, secretário executivo do programa que proíbe os testes nucleares. Na assistência, em lugar de honra estava o artista Kuriakov. Nazarbaiev, que neste ano deixou a presidência mas mantém um papel de tutela sobre o país aceite pela população e pelo seu sucessor Kassym-Jomart Tokayev, fundou um país cujas raízes remontam ao século XV, com Janybek Khan e Kerey Khan como os criadores do Estado cazaque, mas que chegou a ser a única república soviética em que o povo que lhe dava nome era uma minoria. O seu legado é pois bem positivo, pois conseguiu a coexistência das nacionalidades, estancando o êxodo dos russos mas promovendo a cultura cazaque, povo tradicionalmente de nómadas, que fala uma língua turca e que pratica um islão tolerante, influenciado pela tengrismo e pelas muitas décadas de comunismo também. Para sair do Polígono de Semipalatinsk, idealizado por Lavrent Beria para glória de Estaline e da União Soviética, demoramos outra hora e meia, talvez quase duas, pois caiu a noite e o minibus avança com maior cautela. O recinto tem 18 mil km2, "o tamanho da Bélgica", sublinham alguns responsáveis cazaques, a enfatizar o gigantismo. Na realidade, é do tamanho da Eslovénia..Os fatos antirradiação são despidos com cuidado, colocados num recipiente, para depois serem destruídos. Este é o único local de testes nucleares que pode ser visitado e apesar de ter sido há 30 anos que aconteceu a última explosão todos os cuidados são poucos. A radioatividade baixou também porque a terra à superfície foi toda revolvida, um esforço intenso. Estaline conseguiu aqui a paridade nuclear, de certa forma assegurou que a disputa ideológica com os Estados Unidos seria uma Guerra Fria e não uma quente, que significaria a aniquilação mútua. Que o Cazaquistão tenha renunciado a esse poderio, tão cobiçado ainda hoje, é um dos legados de Nazarbaiev ao seu povo. Há quem acrescente até: também ao mundo.
O cogumelo atómico "muito bonito" resiste na memória de alguns habitantes de Semei, sobretudo contado pelos pais e avós que viviam sem saber de nada nas aldeias próximas do polígono de Semipalatinsk, onde a União Soviética testou 456 bombas nucleares. Mas a cratera criada pela primeira explosão, a 29 de agosto de 1949, continua aqui, mal disfarçada pela vegetação da estepe cazaque. Assim como continuam os altos níveis de radioatividade, com o contador a apitar com insistência, apesar das garantias de Amir Kayirzhanov que são normais..O técnico do Centro Nuclear Nacional do Cazaquistão (NNC), vestido com um fato especial branco e com máscara para respirar, obrigatório também para os jornalistas, lá acaba por explicar que "normais" quer dizer 15 vezes mais do que seria admissível numa cidade. A mais próxima é Kurchatov, onde vivem os cientistas ainda hoje ligados à vontade de investigação nuclear, agora para fins pacíficos.."Kurchatov é o nome do grande cientista que iniciou o programa nuclear", explica Vladimir Vityuk, secretário científico do NNC, ainda no museu que conta como aqui a União Soviética se pôs a par dos Estados Unidos quatro anos depois de Hiroxima e Nagasáki. Há neste museu uma reprodução do gabinete de trabalho de Kurchatov, onde se vê um velho gira-discos, livros diversos em russo, também uma fotografia de Lenine. E sobre a secretária um livro de honra para os visitantes escreverem algo: Nursultan Nazarbaiev, pai da independência do Cazaquistão em 1991 e até este ano presidente da República, foi um dos que deixaram mensagem. Também Ban Ki-moon, o sul-coreano que antecedeu António Guterres como secretário-geral da ONU, deixou lá um apelo à não proliferação. Mas os cazaques hoje querem bastante mais: são signatários do tratado que visa proibir todas as armas nucleares. "Há um grande consenso na sociedade cazaque na renúncia às armas nucleares", diz Murat Umarov, diretor executivo do Instituto de Segurança Radioativa, parte do NNC. Desde que o arsenal nuclear soviético que estava em território cazaque foi transferido para a Rússia, há mais de duas décadas, o NNC dedica-se a perceber melhor a potencial utilização pacífica da tecnologia (não funciona atualmente nenhuma central nuclear no país) e também o efeito sobre as populações do quase meio milhar de testes realizados. Basta pensar que o próprio Kurchatov terá morrido aos 57 anos debilitado pelas radiações para se perceber que pelo menos nos primeiros tempos era escassa a noção do risco. E o local foi escolhido por ser quase despovoado, o que não significa que não houvesse aldeias e que de alguma forma mesmo a cidade de Semipalitinsk, hoje Semey, fosse afetada, embora a 150 quilómetros..É famoso o pintor cazaque Kuriakov, que nasceu sem braços e que conta que a mãe viu vários cogumelos atómicos. Num lar para idosos de Semey, onde se homenageia numa sala com vitrinas recheadas de medalhas os que combateram na Segunda Guerra Mundial e ali passaram os últimos anos de vida, vive ainda alguém com idade para reivindicar ter presenciado o teste de 1949: "Foi uma luz enorme. Nunca tinha visto nada assim. A União Soviética não queria ficar atrás da América e foi a América que começou tudo", diz Oshybayev Otegen, de chapéu tradicional cazaque, agarrado a um andarilho, excitadíssimo com o que está a dizer, como se os jornalistas presentes pudessem ser as derradeiras testemunhas das suas recordações. No lar, alguns dos idosos têm deformações, um deles um rosto onde olhos, nariz e boca se confundem. Mas ninguém se atreve a dizer que esta ou aquela deformidade é consequência direta dos testes nucleares. Quando muito, como faz Tolkyn Bulegenov, professor na Universidade Médica de Semey, "pode dizer-se que as doenças oncológicas têm nesta região uma incidência 10% a 15% superior ao resto do país". Na universidade, um pequeno museu de patologia parece uma sala dos horrores: em frascos com formol estão vários fetos, alguns com crânios enormes, outros sem membros, uns siameses. De novo a mesma ideia: "Não há documentos a historiar estes casos e, portanto, não se pode dizer que resultam disto ou daquilo. Desta vez, é Yana Milyushina, professora de patologia, a ser muito clara, mesmo que a ideia das consequências do nuclear estejam muito enraizadas nesta cidade que foi um posto avançado da colonização das terras cazaques pelo Império Russo no século XIX e onde o romancista Fiódor Dostoiévski chegou a prestar serviço militar, ali tendo escrito dois livros. Retomemos a discrição da ida até ao ponto das detonações. Hora e meia de carro por uma estrada de terra batida. Em redor, tudo plano. O solo está coberto por ervas acastanhadas, já meio secas, ilhotas de mato rasteiro verde surgem de vez em quando, de árvores nem sinal, a não ser que assim chamemos ao ocasional arbusto mais alto, um metro ou metro e meio no máximo. Comenta um jornalista japonês do grupo que "até se ver a estepe pode imaginar-se mas não se chega nem perto do que ela é mesmo". Não é a sua primeira vez no Cazaquistão, pois, por causa de Hiroxima e de Nagasáki, o novo país da Ásia Central e o Japão partilham muita informação sobre o nuclear, sempre numa perspetiva pacífica. "A diferença, quando se fala de doenças, é que nas cidades japonesas a explosão foi uma só em cada. Aqui sucederam-se durante décadas", já tinha sublinhado Murat Umarov, do NNC. Olho para a cratera do tal teste original, que Estaline batizou de Primeiro Relâmpago. Foi uma explosão com a mesma carga destrutiva da Fat Man lançada em agosto de 1945 pelos americanos sobre Nagasáki, forçando finalmente o imperador japonês a anunciar a rendição ao povo. Em redor do antigo epicentro nuclear, restos de edifícios em betão e uma ponte ferroviária. Lembro-me de um gráfico que vi duas horas antes no museu. Em torno do epicentro, alinhavam-se, como se fossem uma rosa dos ventos, edifício civis, instalações militares, tanques de guerra, aviões, até várias espécies de animais. Afinal, mais do que estudar a potência da bomba, o que os cientistas queriam perceber, e dar a conhecer às chefias militares, era o impacto destrutivo da explosão. E uma fileira de câmaras altamente resistentes filmavam tudo..Nazarbaiev, que já era o secretário-geral comunista no tempo do Cazaquistão soviético, explicou depois porque foi tão convicto na renúncia ao nuclear, tendo o seu país em 1991 aquele que seria o quarto maior arsenal: argumentou que manter um programa nuclear exigiria recursos financeiros que o Cazaquistão independente deveria antes dedicar ao seu desenvolvimento. E conseguiu, pois, não só reservar o dinheiro do petróleo para os fins prioritários, como obteve dos Estados Unidos e da Rússia apoio científico e económico para desmantelar o Polígono de Semipalatinsk, selando em túneis o lixo radioativo. E passou a ser uma bandeira da política externa cazaque o combate à proliferação e agora em prol da destruição total das armas nucleares..A 29 de agosto, nos 70 anos exatos do Primeiro Relâmpago, foi entregue em Nur Sultan o Prémio Nazarbaiev pela proibição das armas nucleares, ganho a título póstumo pelo japonês Yukiya Amano, que era diretor da agência internacional da energia atómica, e também pelo burquinês Lassina Zerbo, secretário executivo do programa que proíbe os testes nucleares. Na assistência, em lugar de honra estava o artista Kuriakov. Nazarbaiev, que neste ano deixou a presidência mas mantém um papel de tutela sobre o país aceite pela população e pelo seu sucessor Kassym-Jomart Tokayev, fundou um país cujas raízes remontam ao século XV, com Janybek Khan e Kerey Khan como os criadores do Estado cazaque, mas que chegou a ser a única república soviética em que o povo que lhe dava nome era uma minoria. O seu legado é pois bem positivo, pois conseguiu a coexistência das nacionalidades, estancando o êxodo dos russos mas promovendo a cultura cazaque, povo tradicionalmente de nómadas, que fala uma língua turca e que pratica um islão tolerante, influenciado pela tengrismo e pelas muitas décadas de comunismo também. Para sair do Polígono de Semipalatinsk, idealizado por Lavrent Beria para glória de Estaline e da União Soviética, demoramos outra hora e meia, talvez quase duas, pois caiu a noite e o minibus avança com maior cautela. O recinto tem 18 mil km2, "o tamanho da Bélgica", sublinham alguns responsáveis cazaques, a enfatizar o gigantismo. Na realidade, é do tamanho da Eslovénia..Os fatos antirradiação são despidos com cuidado, colocados num recipiente, para depois serem destruídos. Este é o único local de testes nucleares que pode ser visitado e apesar de ter sido há 30 anos que aconteceu a última explosão todos os cuidados são poucos. A radioatividade baixou também porque a terra à superfície foi toda revolvida, um esforço intenso. Estaline conseguiu aqui a paridade nuclear, de certa forma assegurou que a disputa ideológica com os Estados Unidos seria uma Guerra Fria e não uma quente, que significaria a aniquilação mútua. Que o Cazaquistão tenha renunciado a esse poderio, tão cobiçado ainda hoje, é um dos legados de Nazarbaiev ao seu povo. Há quem acrescente até: também ao mundo.