Num tempo em que a nossa perceção do mundo está enfeudada ao "social" em rede, importa, mais do que nunca, discutir como é que as imagens (e os sons) fazem parte daquilo a que damos o nome de realidade. Daí que me pareça que um dos grandes acontecimentos deste LEFFEST, ainda que minimalista e "marginal", seja os trabalhos televisivos do inglês Mike Dibb com o escritor John Berger (1926-2017): Ways of Seeing (1972) e Once Upon a Time (1983-1985)..Ironia dos tempos: são, de facto, produções para televisão que há muito transcenderam os limites expressivos, e também as leis narrativas, do meio em que nasceram. Ways of Seeing (de que será apresentado o primeiro dos seus quatro episódios) é uma prodigiosa reflexão sobre a nossa relação com as imagens, da pintura clássica à publicidade - seria depois transformada em livro, entre nós disponível como Modos de Ver (ed. Antígona, 2018). Quanto a Once Upon a Time, e tal como o título sugere, trata-se de uma pedagógica deambulação sobre o poder do "era uma vez", isto é, da arte universal de contar histórias - uma oportuna reflexão que nos ajuda a perceber a degradação dessa arte, atualmente promovida pela tecnocracia global do cinema, a começar por muitos produtos da Marvel & C.ª.Alguns títulos selecionados (competição e extracompetição) podem ser vistos como derivações exemplares destas questões - o que vemos, como vemos, como narramos aquilo que vemos -, certamente não por acaso desembocando na questão do realismo. Aliás, sempre no plural: os realismos..Destaco, assim, Unclenching the Fists (Rússia), de Kira Kovalenko, e Correu Tudo Bem (França), de François Ozon. O primeiro detalhando a existência traumática de uma jovem da Ossétia do Norte, numa teia emocional em que o individual e o coletivo se enredam de modo perturbante; o segundo lida com a vontade de um velho senhor que, na sequência de um acidente vascular cerebral, implora à filha que crie as condições para pôr fim à sua vida ou, como diz a expressão legal, para que tenha uma "morte assistida". Entre a rudeza trágica do primeiro e o misto de gravidade e ironia do segundo, perpassa a mesma interrogação: como representar de forma realista o que, por definição, tende a escapar ao domínio do visível?.Nesta perspetiva, creio que será também importante descobrir Paris 13 (título original Les Olympiades), de Jacques Audiard. Sendo um cineasta obviamente sensível ao impulso realista - lembremos o caso emblemático de Dheepan (2015), centrado num refugiado do Sri Lanka em França -, Audiard relança aqui esse impulso através do retrato interior de um bairro de Paris, não temendo a "ligeireza" da pulsão melodramática, em particular na descrição da vida sexual das suas personagens. Isto sem esquecer, claro, que o LEFFEST promove uma homenagem a Cristi Puiu, figura nuclear da renovação do cinema romeno, simbolicamente iniciada pelo seu filme A Morte do Sr. Lazarescu (2015), instaurando um novo realismo, contundente e crítico, sobre as convulsões internas do seu país..dnot@dn.pt
Num tempo em que a nossa perceção do mundo está enfeudada ao "social" em rede, importa, mais do que nunca, discutir como é que as imagens (e os sons) fazem parte daquilo a que damos o nome de realidade. Daí que me pareça que um dos grandes acontecimentos deste LEFFEST, ainda que minimalista e "marginal", seja os trabalhos televisivos do inglês Mike Dibb com o escritor John Berger (1926-2017): Ways of Seeing (1972) e Once Upon a Time (1983-1985)..Ironia dos tempos: são, de facto, produções para televisão que há muito transcenderam os limites expressivos, e também as leis narrativas, do meio em que nasceram. Ways of Seeing (de que será apresentado o primeiro dos seus quatro episódios) é uma prodigiosa reflexão sobre a nossa relação com as imagens, da pintura clássica à publicidade - seria depois transformada em livro, entre nós disponível como Modos de Ver (ed. Antígona, 2018). Quanto a Once Upon a Time, e tal como o título sugere, trata-se de uma pedagógica deambulação sobre o poder do "era uma vez", isto é, da arte universal de contar histórias - uma oportuna reflexão que nos ajuda a perceber a degradação dessa arte, atualmente promovida pela tecnocracia global do cinema, a começar por muitos produtos da Marvel & C.ª.Alguns títulos selecionados (competição e extracompetição) podem ser vistos como derivações exemplares destas questões - o que vemos, como vemos, como narramos aquilo que vemos -, certamente não por acaso desembocando na questão do realismo. Aliás, sempre no plural: os realismos..Destaco, assim, Unclenching the Fists (Rússia), de Kira Kovalenko, e Correu Tudo Bem (França), de François Ozon. O primeiro detalhando a existência traumática de uma jovem da Ossétia do Norte, numa teia emocional em que o individual e o coletivo se enredam de modo perturbante; o segundo lida com a vontade de um velho senhor que, na sequência de um acidente vascular cerebral, implora à filha que crie as condições para pôr fim à sua vida ou, como diz a expressão legal, para que tenha uma "morte assistida". Entre a rudeza trágica do primeiro e o misto de gravidade e ironia do segundo, perpassa a mesma interrogação: como representar de forma realista o que, por definição, tende a escapar ao domínio do visível?.Nesta perspetiva, creio que será também importante descobrir Paris 13 (título original Les Olympiades), de Jacques Audiard. Sendo um cineasta obviamente sensível ao impulso realista - lembremos o caso emblemático de Dheepan (2015), centrado num refugiado do Sri Lanka em França -, Audiard relança aqui esse impulso através do retrato interior de um bairro de Paris, não temendo a "ligeireza" da pulsão melodramática, em particular na descrição da vida sexual das suas personagens. Isto sem esquecer, claro, que o LEFFEST promove uma homenagem a Cristi Puiu, figura nuclear da renovação do cinema romeno, simbolicamente iniciada pelo seu filme A Morte do Sr. Lazarescu (2015), instaurando um novo realismo, contundente e crítico, sobre as convulsões internas do seu país..dnot@dn.pt