Na Dinamarca como em Portugal, para inovar "é preciso acabar com as hierarquias"

A eurodeputada dinamarquesa participou há dias numa conferência organizada pelo Instituto Francisco Sá Carneiro e falou ao DN sobre a forma de Portugal se tornar mais competitivo. Conservadora mas orgulhosa das tatuagens que tem nos pulsos, a também enfermeira avaliou a gestão que a UE fez da pandemia e as lideranças no feminino.
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Participou há dias numa conferência sobre o papel da inovação no desenvolvimento económico local. Como é que Portugal se pode inspirar no exemplo dinamarquês nesta matéria?
Uma das principais mensagens é a necessidade de promover as condições para que a inovação possa acontecer nas pequenas e médias empresas (PME), para que estas possam ter mais contacto com quem faz investigação, com as universidades. Só assim podem aproveitar novas ideias, testar novas tecnologias. Tem de haver mais pingue-pongue entre PME e universidades. Esta cocriatividade entre investigadores e quem torna as ideias reais e as leva ao mercado é um dos fatores-chave que explicam porque a Dinamarca é um país tão atrativo para o investimento estrangeiro. Mas é também algo que torna o mercado de trabalho mais ágil em termos de competências e em relação à inovação. Um dos fatores essenciais para alimentar o mundo da inovação é - e posso citar um antigo CEO da companhia aérea SAS - "deitar abaixo a pirâmide". É preciso acabar com as hierarquias. Na Dinamarca temos um mercado de trabalho muito achatado, muito informal na relação entre os trabalhadores menos qualificados, os gestores, os investigadores e as administrações das empresas. Costumamos dizer na Dinamarca que qualquer trabalho é trabalho decente. E estamos habituados a que todos façam parte da linha de produção - seja quem for, se tiver uma ideia, se acha que algo pode ser melhorado, o seu contributo é bem-vindo. Todos têm obrigação de falar, para tornar a inovação mais rápida e melhor. Tal como a Dinamarca, Portugal é um país muito orgulhoso, que tem investigadores de alto nível. Mas parece haver uma distância enorme entre a investigação e as PME. A ponte tem de ser o mercado de trabalho. Recomendaria a Portugal que desenvolva um mercado de trabalho menos hierárquico e mais liberal. E sugiro que façam o que já fazemos há mais de cem anos na Dinamarca - e sei que não acontece do dia para a noite -, onde temos esta cultura de contratos coletivos. Os donos das PME estão habituados a negociar a toda a hora com as organizações de trabalhadores de maneira a chegarem a acordo sobre os salários, as reformas e a melhor forma de dar mais competências aos trabalhadores menos qualificados. Isto dá aos trabalhadores um sentimento de segurança, eles sabem que não têm de ter medo das novas tecnologias porque sim, podem precisar de novas competências, de voltar à escola um tempo, mas sabem que vão ter emprego à espera quando regressarem.

A pandemia e a crise que já se sente podem ser a oportunidade para Portugal mudar a forma como faz as coisas? Antes estávamos muito focados no turismo...
Exatamente. Portugal não tem um perfil muito variado em termos de indústrias. Uma das lições que aprendemos com a covid é a não pôr todos os ovos em poucos cestos. O turismo era um dos maiores cestos. A robustez e resiliência da sociedade dinamarquesa deve-se ao facto de ter um largo espectro de indústrias. Sei que é fácil falar quando se é um pequeno país nórdico, mas temos sido muito táticos ao posicionar as nossas PME e as nossas empresas no topo da inovação. Temos algumas grandes empresas que estão consolidadas no mercado global, mas a maior parte das nossas indústrias estão constantemente a fazer coisas novas. Não competimos em termos de preço, competimos pela novidade. Isso é algo em que Portugal pode apostar. Até porque têm universidades e institutos de topo que podem mandar mais ideias, protótipos de novas tecnologias para as PME. Mas tem de haver também do lado das empresas, do lado do mercado de trabalho, essa tradição de dar novas competências aos trabalhadores. É aqui que o Plano de Recuperação e Resiliência é uma grande oportunidade porque traça a prioridade de 20% do dinheiro para a transformação digital. E 37% na luta contra as alterações climáticas.

Muitas destas pessoas ligadas à inovação deixaram Portugal durante a crise financeira. Os governos estão a subestimar a importância de investir em inovação?
Definitivamente. A Dinamarca é um dos países que mais investem em investigação, proporcionalmente. Portugal está a meio da tabela. No Parlamento Europeu temos a noção de que nós, enquanto eurodeputados, temos obrigação de pressionar para que haja mais financiamento e mais energia política a nível nacional para apostar em investigação e inovação. Especialmente na inovação, porque não é algo que apenas acontece nas universidades. Acontece nesse tal pingue-pongue entre empresas e investigadores. Por isso é preciso derrubar os silos que isolam esse setor da inovação e o das empresas. Não é só uma questão de dinheiro. Para que a inovação aconteça são necessários desafios - e neste momento é coisa que não nos falta. Mas em Portugal o que me parece é que têm um governo que tem todas as boas ideias, as ambições certas, mas tem faltado torná-las realidade.

A Pernille é também enfermeira. Como vê a resposta da União Europeia a esta pandemia?
É um grande, grande desafio para cada país, para cada sociedade e para a UE, sendo um grupo de Estados nacionais que têm uma união, uma comunidade, onde há sempre uma fricção - saudável mas também difícil - entre o que fazem os Estados membros e o que faz Bruxelas. E sendo a saúde uma competência nacional, a covid desafiou verdadeiramente estas dinâmicas. Do meu ponto de vista a resposta tem sido ao mesmo tempo positiva e negativa. O lado positivo é que nós, enquanto comunidade, atuámos bastante bem, conseguimos fazer muita coisa juntos. Não o fizemos de forma perfeita - desde o encerramento de fronteiras à preocupação com o mercado único, dos transportes às vacinas e à infraestrutura para as distribuir. Não conseguimos ter uma aplicação transnacional para monitorização a covid. Mas, e este é o lado positivo, conseguimos agir juntos para desenvolver uma vacina, mostrando o nosso compromisso junto da indústria farmacêutica, apesar de sabermos que por norma demora cinco, oito ou até dez anos. Fizemos isso juntos. A UE foi das forças que mais pressionaram nesse sentido. Nisso estivemos muito bem. Espero que agora possamos ter um passaporte de vacinação para os cidadãos da UE. E que o mercado único volte a funcionar. Em termos de ajudas estatais, devemos um agradecimento à Comissão Europeia, pela rapidez com que aprovou o pacote de apoios e a forma como cada Estado vai usar esses fundos. Do ponto de vista de uma enfermeira, com um mestrado em Saúde Pública e dona da minha própria empresa 12 anos antes de entrar na política, diria que tivemos experiências surpreendentemente positivas ao nível da UE, mas também houve pontos negativos a que temos de responder no futuro.

Como dinamarquesa, como vê o facto de seis dos oito países nórdicos e bálticos terem uma mulher primeira-ministra. Coincidência ou o resultado de uma sociedade mais igualitária?
Não me parece que se possa dizer que a inovação, a riqueza, a segurança, etc., estejam ligadas a uma liderança feminina. Tenho lido artigos a elogiar as mulheres líderes nos países nórdicos. Mas, e sendo também sexóloga, sei que a forma como nos vemos enquanto pessoas, os nossos conceitos de amor e família, vão muito além de sermos homem ou mulher. Para mim trata-se de seres humanos. E conheço muitas mulheres, tanto na política como no mundo empresarial, que são tão antiquadas quanto a tradicional imagem do homem que temos. É uma questão de mentalidade. E devemos julgar-nos com base nas nossas competências e nos valores que trazemos enquanto seres humanos. Tenho também um mestrado em Inovação e Liderança, e é importante percebermos que a inovação não é apenas fazer algo novo. É juntar um grupo diverso de pessoas e deixar que a inovação aconteça. Quanto maior a diversidade, melhor. Não sonho com um futuro em que só teremos mulheres primeiras-ministras. Quero ver todo o tipo de pessoas na política. E algumas mulheres, e alguns homens, são demasiado um estereótipo e ficam presos nesse estereótipo. Por isso sou mais aberta em relação a quem sou, também na minha vida privada, também nos paradoxos da minha vida. Sou uma conservadora mas tenho tatuagens nos pulsos com os nomes dos meus filhos. Isso derruba um pouco a imagem tradicional que se tem de uma política conservadora.

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