Na despedida de Paul Simon no local onde tudo começou

A digressão Homeward Bound ainda segue para os Estados Unidos, mas a despedida da Europa aconteceu em Londres. A cidade onde tudo começou
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Quando no início deste ano Paul Simon anunciou uma tournée de despedida, Londres parecia ter sido a cidade escolhida para dizer adeus a uma carreira de seis décadas. Simon acrescentou depois uma tour pelos Estados Unidos que culminará com um concerto final em Nova Iorque, no dia 22 de setembro. Mas o concerto deste domingo no Hyde Park em Londres foi uma daquelas despedidas que fecham o círculo porque nos trazem ao lugar onde tudo começou. Afinal, a digressão Homeward Bound, que rouba o título a uma canção escrita para Kathy Chitty, a secretária de escritório de Essex que foi a primeira musa de Simon, é uma carta de amor e de saudade, um desejo de regresso a casa que, nesse momento, era o Reino Unido.


Foi na capital britânica que Paul Simon encontrou os primeiros sinais do sucesso que teimava em escapar-lhe nos Estados Unidos. Antes de The Sound of Silence explodir nas rádios americanas, no outono de 1965, Simon testava a sua sorte no amor e na música, escrevendo para Kathy, atuando a solo em bares de folk e no programa Five to Ten da BBC, cuja audiência se rendeu às suas canções. Muitas das canções que fizeram depois o sucesso de Simon & Garfunkel foram escritas por Paul durante a temporada em terras de sua Majestade.
O sol queimava os rostos dos muitos milhares que encheram Hyde Park este domingo quando Paul Simon apareceu, com um atraso de dez minutos, olhos escondidos por detrás dos óculos de sol, t-shirt vermelha e um arranque perfeito para uma viagem que durou mais de duas horas. America, escrita também para Kathy, antecedeu 50 Ways to Leave Your Lover e as primeiras palavras ao público, ditas de forma emocionada. "Quero agradecer-vos a todos. Foi um privilégio. A minha vida toda tem sido um privilégio," disse. Simon prometeu um concerto com as músicas que todos queriam ouvir, dizendo que apenas uma ou duas seriam menos conhecidas, numa referência aos seus trabalhos mais recentes. Cumpriu, mas não em jeito jukebox. A solidão criativa e nostálgica dos primeiros anos de Simon, "poeta e banda de um homem só" dividido entre a carreira a solo e o duo com o amigo de infância Art Garfunkel, deram lugar a colaborações musicais que garantem uma nova vida e novos arranjos a um repertório de mais de meio século. Dois dos momentos mais comoventes em Hyde Park resultaram da intimidade que Simon tem em palco com a banda de 15 músicos que o acompanha. Bridge Over Troubled Waters, quase irreconhecível, foi um deles. Escrita por Paul com a voz de contratenor de Art na cabeça, acabou por se tornar na assinatura de Garfunkel. "Essa canção é um mistério para mim porque escapou-me," disse Paul Simon uma vez. Ao pôr do sol em Hyde Park, Simon fez o único piscar de olho ao amigo. "Escrevi esta canção há muito tempo e agora que o sol desaparece no horizonte e esta é a minha última digressão, está na hora de recuperá-la", disse, aproximando as mãos ao ventre, como se trouxesse Bridge de volta a casa. Rene and Georgette Magritte With Their Dog After the War, com arranjos de orquestra, deixou o público em silêncio e mereceu uma das maiores ovações da noite.


Paul Simon, cuja fama de cantor neurótico e depressivo marcou parte da sua carreira, apresentou-se em palco descontraído, sorridente e brincalhão, por vezes dançando ao ritmo da banda. Contrariamente a Dylan, o seu maior rival durante a década de sessenta, Simon absteve-se quase sempre de fazer declarações políticas com as suas músicas ou nos seus concertos. Paul Simon preferiu compor sobre as impressões do quotidiano, palavras escritas nas paredes do metro, espiões em fatos de gabardina e raparigas que são trampolins humanos. Durante a peregrinação espiritual à África do Sul, que antecedeu a peregrinação a Graceland e o álbum que consolidou a sua carreira a solo, Paul Simon foi criticado por não se pronunciar claramente contra o regime de apartheid. Respondeu, de forma direta e sucinta que não era um político com uma missão, mas um músico à procura de bons sons. No domingo em Hyde Park, fez duas intervenções políticas, uma delas ganhando um forte significado pela música que se seguiu. Antes de tocar Questions for the Angels, exortou a audiência a ler sobre Edward O. Wilson, em quem se inspirou para escrever uma canção sobre os problemas ambientais. Antes de arrancar para a balada que questiona o sonho americano, American Tune, Simon disse com convicção, mas sem agressividade: "Tempos estranhos estes. Não desistam." Na semana em que milhares protestaram em Londres contra as "políticas de ódio" de Donald Trump, bastou.


Dois encores deram ao público as músicas que ainda faltavam. Graceland e Kodachrome fizeram Hyde Park dançar, casais cinquentões e jovens de 30 anos, pais agarrados a filhas pequenas. As letras de Homeward Bound e The Boxer foram repetidas em uníssono, a nostalgia a adensar-se quando já se ouvia o som do silêncio de Paul Simon. E, claro, The Sound of Silence antes de as luzes se apagarem. "E agora não há mais Paul Simon?," diz alguém para preencher o vazio. O pugilista já tinha partido, mas algo permanecia ainda.
"É tempo de regressar a casa agora, mas seremos para sempre os vossos "long lost palls"", lia-se nos ecrãs. O fim silencioso e quieto de uma era.

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