Na aldeia onde um tanque salvou vidas cuida-se dos vivos - e dos mortos

Em 2017, quando o fogo de Pedrógão Grande varreu todo o Pinhal Interior, a aldeia de Nodeirinho perdeu 11 habitantes. O DN revisita a fonte e o tanque que há dois anos salvou a vida a várias pessoas
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A vida de D. Marta nunca mais foi a mesma, desde há dois anos. Nem a dela nem a da filha, Maria do Céu, assim como a de nenhum dos habitantes. Serão pouco mais de 30, atualmente, eram mais 11 há dois anos. São esses - os que morreram no fogo de Pedrógão Grande, a 17 de junho de 2017 - que, desde então, fazem levantar todos os dias a aldeia. São esses cujos nomes figuram no monumento erguido há um ano, em frente ao tanque onde outros tantos se salvaram naquela tarde-noite em que "o inferno desceu à terra".

Marta da Conceição foi, sem saber, o motor que salvou as outras vidas. É de poucas falas, mas nem sempre foi assim. Depois daquela madrugada, parece que emudeceu. Foi por causa da sua parca mobilidade que a filha, Maria do Céu, teve a ideia de pegar nela ao colo e a colocar dentro do tanque.

À medida que o fogo avançou e os moradores iam fugindo - a maioria de carro - alguns pararam junto ao tanque e acabaram por se salvar, desta maneira.

Por estes dias, Marta Conceição continua de olhar vazio. Nunca teve coragem de se abeirar do monumento que o sobrinho João "Viola" concebeu, em homenagem às vítimas. Já Maria do Céu, a filha, não tem outro remédio: todos os dias ali passa quando vai trabalhar, é aquele o caminho para o Centro de Dia da Graça, ao serviço da Santa Casa da Misericórdia local.

Neste 17 de junho, dois anos depois, só os carros de exteriores e reportagem das televisões enchem de movimento a aldeia do Nodeirinho. Dina Duarte e João Viola vão dando entrevistas a contar como esse sentimento de mágoa, saudade e dor ainda é tão presente nos que sobreviveram. De resto, é como se fosse uma aldeia fantasma. Maria do Céu está a trabalhar, a mãe só sai à rua para apanhar sol, mas o tempo hoje está cinzento. E fresco, ao contrário de 2017.

A fonte (e o tanque) que em tempos serviu de lavadouro e bebedouro à população de Nodeirinho, ganhou uma nova função naquele dia: refrescar a pele queimada de uns, proteger das queimaduras os outros. Salvar a vida de todos, dos que foi possível.

A Fonte da Vida

Não se sabe ao certo quantas pessoas se salvaram ali, entre o final do dia 17 e a madrugada de 18 de junho de 2017. Alguns falam em 12, outros em 14. Dois dias depois, porém, contavam-se apenas seis. Um dia depois do fogo, o relato do casal Carlos Madeira e Maria Pereira (que moram em Cascais) à equipa de reportagem do DN era emotivo: "Viemos na quinta para descansar. No sábado, quando começámos a ver tudo isto a arder, metemo-nos no carro". Queriam fugir dali para um lugar seguro. Entre a aldeia da Figueira e a vizinha Nodeirinho, o fumo e calor impediam a visibilidade.

Em pânico, a população começa a abandonar as casas. Nesse movimento desenfreado, um carro a alta velocidade bate na viatura de Carlos Madeira e segue viagem, em direção ao IC8. Uns metros à frente, enquanto outro carro ardia numa ravina, e fogo galgava montes e vales, "entrou-me pelo carro uma senhora aos gritos pela mãe e pela neta". Era Gina Antunes, soube-se mais tarde. A mãe, Odete, e a fillha, Bianca, de apenas três anos de idade, morreram carbonizadas dentro do carro. Foi no tanque da aldeia onde nasceu e mora que Gina acabou por reencontrar o marido e o filho.

É difícil imaginar o cenário, olhando para a exígua dimensão do tanque. Mas Marta, uma das mais idosas da aldeia, sabe que foi por si que tudo começou. Já lá estava, com a família, quando viu chegar todos os outros, cada um com a sua história.

Desde então, o tanque foi rebatizado de "Fonte da Vida". Em frente, ergue-se o monumento. O artista João Viola explicava na altura tratar-se de "um memorial à vida, para fazer lembrar às gerações futuras o que é necessário mudarmos a mentalidade. Não podemos olhar para um eucalipto e pensar "isto é dinheiro". Porque se isso não for feito, os 11 daqui - e os mais de 100 do país - morreram em vão. Eu não quero que isso aconteça".

Dentro do monumento há pedaços das casas e dos carros. Há um ano, foi inaugurado pelo Presidente da República. Esta tarde os habitantes de Nodeirinho ainda acreditavam que Marcelo Rebelo de Sousa iria passar por lá, embora a cerimónia evocativa tenha acontecido sobretudo ontem. Para hoje está apenas previsto ecoar 66 badaladas de gongo pelas vítimas do fogo. E ontem foi tempo de escutar (junto ao monumento) o relato de Rui Rosinha, à época segundo comandante dos Bombeiros Voluntários de Castanheira de Pêra, que sofreu queimaduras em praticamente todo o corpo e nunca mais conseguirá recuperar totalmente.

Marcelo, Costa e os ministros: rezar e trabalhar

O Governo e o Presidente da República escolheram este ano Castanheira de Pêra para evocarem as 66 vítimas do fogo, bem como os que perderam casas, bens e saúde. São mais de 250 feridos, alguns com sequelas para a vida toda, como Rui Rosinha. Arderam cerca de 500 casas e cerca de 50 empresas. Nem todas voltaram a laborar. O Governo estima que "90% das habitações está já recuperada".

O primeiro-ministro, António Costa - que levou seis ministros com ele, além do presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues - participou ao final da manhã na missa de homenagem aos mortos, feridos e outras vítimas do fogo. Tem estado reunido ao longo do dia com os autarcas daquele território para perceber o nível de recuperação e o que falta fazer nesse sentido.

E ainda esta quarta-feira vai assinar um protocolo com a Associação das Vítimas de Pedrógão Grande, com vista a erguer um memorial.

Dois anos após o grande incêndio de Pedrógão Grande, Costa acredita que as causas profundas dos incêndios "nunca serão resolvidas" a partir dos meios de combate, tal como disse esta manhã, durante a cerimónia.

"Depois de 2006, muitos acreditaram que estávamos a salvo e as alterações que tinham sido feitas na Proteção Civil e as estatísticas de redução de áreas ardidas significavam que tínhamos virado uma página. Infelizmente, a página não se virou, porque as causas profundas nunca serão resolvidas nos meios de combate", afirmou António Costa.

De resto, o Primeiro-Ministro acredita que "as causas dos incêndios que afetam o país de forma cíclica apenas poderão ser combatidas quando se conseguir vencer o desafio extraordinário de revitalizar estes territórios de baixa densidade" e se conseguir "concluir a reforma da floresta".

Ora, como se viu na reportagem que o DN publicou no último sábado, falta tudo para recuperar a floresta.

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