"Musicais são uma forma de arte americana. O teatro  musical começou nos Estados Unidos"

Pelo papel principal em <em>Chaplin </em>e depois em <em>Mrs. Doubtfire</em>, Rob McClure foi já por duas vezes nomeado para o Tony de Melhor Ator. Trocou agora, durante uns dias, Nova Iorque por Lisboa para ensinar a sua arte e falar da mística da Broadway. Iniciativa do <em>workshop </em>é da MTL - Music Theater Lisbon, de Martim Galamba, cujo ambicioso objetivo é criar em Portugal uma indústria de teatro musical. A Junta de Freguesia do Lumiar e a embaixada americana apoiam o projeto.
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Os musicais da Broadway são um fenómeno nova-iorquino ou americano? A verdade é que há várias pessoas da América - e do resto do mundo - a irem ver os espetáculos.
Acho que poucos americanos sabem isto, mas os musicais são uma das poucas formas de arte que são americanas, isto é, o teatro musical começou nos Estados Unidos. Muitas das outras formas de arte, como a ópera por exemplo, já são muito antigas. Agora, ao viajar por países como Portugal, começo a aperceber-me que não somos um país tão antigo como isso. Sou de Filadélfia e cada vez que passo pelo sino da liberdade penso "isto é tão antigo", mas não, na realidade tem pouco mais de 200 anos. Há poucas formas de arte que os americanos podem reclamar como suas, mas o teatro musical é uma delas, começando por Show Boat e depois com musicais como Oklahoma ou Carousel. Há vários desses musicais, dos primórdios, que definiram esta forma de arte - de estar a falar e passar a estar a cantar, voltando depois novamente a falar. E as músicas não só surgem no enredo, como surgem para o enredo. Por exemplo, no Carousel há uma música chamada If I loved You e a música começa enquanto está a acontecer um diálogo entre duas personagens e depois elas começam a cantar. Penso que o Carousel terá estreado nos anos 40 e foi uma novidade, as pessoas nunca tinham visto aquilo antes, foi uma explosão desta forma de arte que foi ficando cada vez maior ao longo das décadas. Também há quem diga que Oklahoma foi o primeiro musical americano, pelo menos nesta forma de ter as canções como parte da história e não apenas com personagens a cantar sobre a história. Porque antes disso, as pessoas faziam um espetáculo de teatro em que num momento do enredo havia uma pausa para cantar sobre como se sentiam, mas nunca antes de Oklahoma tinha existido a canção como parte da história e não como uma espécie de paragem no meio do enredo. Foi com Oklahoma que se percebeu que a ação pode desenrolar-se enquanto as pessoas estão a cantar, as músicas podem fazer parte da história.

Foi uma criação americana, mas é uma arte nacional? Isto é, se formos à Califórnia ou às Montanhas Rochosas as pessoas lá vão continuar a ser apreciadoras de musicais?
Ia dizer que não, mas o que me faz pensar que afinal a resposta é sim é que todos os liceus americanos fazem um musical todas as primaveras. Não importa de que parte dos Estados Unidos se seja, mas todas as primaveras se faz um musical nos liceus, portanto, até os miúdos gostam. Acho que a cada dez anos aparece outro novo musical que torna os musicais "porreiros" para a próxima geração. Há sempre um momento em que ouvimos os miúdos de 15 anos dizer que os musicais são coisa do tempo dos avós, não é uma forma de arte propriamente jovem, mas acaba sempre por haver uma renovação. Nas décadas de 50, 60 e 70 os musicais estavam por todo o lado e as músicas dos espetáculos eram as mesmas que tocavam na rádio. Mas a cada dez anos acontece isto, parece que há um esmorecer, mas depois aparece outro grande musical que leva toda uma nova geração a gostar de musicais.

Há vários tipos de musicais, alguns são baseados na literatura clássica europeia, outros são biografias, como o seu Chaplin, e outros são sobre história americana, como Hamilton. Tudo pode ser um musical?
Sim e acho que a chave para um bom musical é encontrar uma boa razão para as personagens cantarem. Acabei de fazer Mrs. Doubtfire na Broadway e muitas pessoas se questionaram porque é que tinha de ter sido transformado num musical, já era um ótimo filme, mas os escritores questionam-se sempre "como é que essa história pode cantar". E à medida que foram explorando Mrs. Doubtfire foram percebendo que, por exemplo, nunca foi muito explorado o que as crianças da história estavam a passar com aquele divórcio complicado que os pais estavam a passar. É aí que se encontra a chave para a história e se percebe como é que as histórias podem cantar e ser qualquer coisa. Por exemplo, o musical Parade, que acabou de estrear , é sobre um judeu no sul dos Estados Unidos, durante a Guerra Civil, e prestes a ser enforcado por um crime que não cometeu. Porque é que essa história havia de ser cantada? Mas o criador descobriu que a história de amor entre este homem e a sua mulher era uma história que podia cantar.

Ter uma mensagem política não é problema para os musicais?
Não, pelo contrário, neste caso é até uma mensagem muito poderosa, contra o antissemitismo. Acho que há pessoas que vão a musicais para saírem com um enorme sorriso na cara, mas há outras que se aperceberam que a música pode mudar-nos e fazer-nos sentir coisas. Se toda a gente está aberta a isso? Não sei. Seria de pensar que as histórias alegres estariam em exibição mais tempo, no entanto, e se olharmos para Os Miseráveis por exemplo, onde toda a gente morre, está sempre em exibição imenso tempo. Quando os musicais são bons, não parece que importe muito se a história é mais lúgubre. Aliás, Sweeney Todd é um exemplo disso, até porque se falarmos com verdadeiros fãs de musicais, a maior parte vai dizer que Sweeney Todd é o espetáculo mais bem escrito de sempre e é sobre um assassino que mata pessoas e as dá de comer a outras pessoas.

Hamilton foi uma surpresa para si? Que tenha tido tanto sucesso?
Sim, absolutamente. Aliás, Lin-Manuel Miranda tinha ganho um Tony com o In The Heights e por causa disso foi convidado para ir à Casa Branca para cantar para o presidente Barack Obama e toda a gente pensou que ele ia cantar algo do musical vencedor. No entanto, ele chega à Casa Branca e diz que está a escrever um musical de Hip-Hop sobre o primeiro secretário do Tesouro, Alexander Hamilton, e toda a gente se riu. Mas, sozinho e sem orquestra, ele começa a cantar e toda a gente se continua a rir. Até que param de se rir e passam a ouvir, e quando ele termina toda a gente se está a rir, mas por ser tão bom. Passados dois anos, Lin-Manuel terminou de escrever Hamilton e abriu ao público e era impossível conseguir bilhetes. Toda a gente falava sobre o novo musical de Hip-Hop e toda a gente queria ir ver. Nessa altura, estava a fazer um outro espetáculo e houve um dia em que perdi o comboio e tive de arranjar um táxi o que me levasse de Nova Iorque para Filadélfia, demorava cerca de uma hora e meia. O motorista eram um jovem negro e perguntou-me se eu fazia musicais, respondi-lhe que sim e ele disse que nunca tinha visto um musical na vida. Mas mencionou que a namorada queria muito ir ver Hamilton, mas que estava impossível arranjar bilhetes. Eu disse-lhe que Hamilton era realmente fantástico e que já que tínhamos uma hora e meia podíamos ouvir, porque tinha gravado no meu telefone. Ele ouviu e mais ou menos a meio disse-me que tinha aprendido mais sobre a história americana com Hamilton do que alguma vez tinha aprendido. Quer dizer, Hamilton não é totalmente factual, mas é bastante. Há mesmo algo de poderoso naquele musical e na forma como se consegue capturar a imaginação.

Mas Lin-Manuel foi capaz de transformar Hamilton e o seu percurso na jovem América num musical.
Exato! E há até várias conversas controversas sobre ter pessoas de cor a representar pessoas brancas de uma forma que celebra a fundação dos Estados Unidos, quando na verdade estas pessoas eram donas de escravos. E quando se fala com o elenco, eles dizem que é preciso permitir que mais do que uma coisa seja verdade ao mesmo tempo, é preciso que ambas essas coisas sejam verdade e isso é complicado, mas está tudo bem. Mais do que uma coisa pode ser verdade ao mesmo tempo e, neste caso, é verdade que estas pessoas fundaram os Estados Unidos e criaram a Constituição, um documento muito importante, podemos celebrar essas ideias inteligentes, mas também continua a ser verdade que nessa altura essas pessoas tinham escravos. É complicado, mas é verdade. Mais do que uma coisa pode ser verdade ao mesmo tempo e acho que a audiência aprecia essa complexidade.

Como é que a audiência reage quando se muda o elenco nu m musical? Por exemplo, agora Hamilton tem um novo elenco, sem Lin-Manuel Miranda no papel principal.
Depende, porque quando o espetáculo é bom pode facilitar a passagem para um novo elenco, mas se o espetáculo for frágil e construído à volta das capacidades de uma só estrela, aí dá muito espaço para que a audiência possa preferir um determinado ator ou elenco. Mas quando o espetáculo é tão bom, não é que não importe, mas a estrela de Hamilton é o próprio espetáculo e não o seu elenco. Fiz um espetáculo chamado Avenue Q na Broadway, era como a Rua Sésamo para adultos, eram marionetes a ensinar sobre sexo e racismo em vez de ensinarem o abecedário e os números, mas era muito divertido. E havia essa situação com esse espetáculo, ou seja, a estrela era Avenue Q e a audiência não se importava com quem era o elenco, apenas queriam ver o espetáculo e isso foi o que aconteceu com Hamilton. Há pouco tempo fiz Bettlejuice na Broadway e é simplesmente fantástico quando descobrimos que há um miúdo de 15 anos que ouve o álbum vezes sem conta e que sabe as letras de cor. Vemos pais que pouparam dinheiro durante meses para poder levar a sua família até Nova Iorque, pagar um hotel e ver um espetáculo na Broadway pela primeira vez. E isto é incrível porque nós estamos nos bastidores a pensar que já fizemos aquele espetáculo tantas vezes, mas para aquela família é a primeira vez. Por isso temos de fazer o espetáculo como se fosse sempre a noite de estreia.

Andrew Lloyd Webber, com Cats ou O Fantasma da Ópera, foi uma exceção ou é possível que musicais britânicos do West End tenham grande sucesso na Broadway?
Certamente que podem. Muitos musicais britânicos tomaram conta da Broadway nos anos 80 e sobretudo os de Andrew Lloyd Webber.

Os americanos consomem estes musicais britânicos?
Sim, certamente que sim. E quando falei com Martim, da Music Teather Lisbon, sobre aquilo que queríamos que acontecesse em Lisboa, eu estava precisamente a dizer que se um escritor português criar um grande musical, um produtor americano pode certamente querer produzi-lo na Broadway. E se e quando acontecer adorava ver o que isso faz à comunidade do teatro aqui e como isso iria inspirar os escritores portugueses de musicais a escrever os próprios materiais. Porque por mais que fosse fantástico que os grandes musicais americanos pudessem vir a ser apresentados em Portugal, seria ainda melhor se houvesse musicais portugueses a serem escritos sobre as paixões portuguesas.

Em relação a estes estudantes em Lisboa, muitos são portugueses e estão fascinados por musicais e querem ser atores. A língua inglesa é essencial? Já vi alguns musicais em português e não é o mesmo.
A sério? Isso é interessante, mas acho que isso também deve ter a ver com algumas melodias terem sido criadas para que a língua inglesa assente nelas, em vez de serem melodias portuguesas criadas para acomodar a língua portuguesa. Mas ver estes estudantes, atravessar o Atlântico para encontrar pessoas como eles, é algo que me deixa muito contente, porque todos são exatamente como eu era. Aliás, acho que eles são muito mais talentosos do que eu era. É maravilhoso ver que o teatro musical atravessou o oceano e despertou a mesma paixão nestes alunos que despertou em mim. Eu vivia a 20 minutos de Times Square e o facto de alguém que está do outro lado do oceano poder ter o mesmo fogo relativamente a isto que eu tenho, nem sequer sabia que podia existir essa mesma paixão pelos mesmos espetáculos, pelos mesmos compositores, pelos mesmos materiais pelos quais me apaixonei. E o facto de eles serem tão bons com tão pouca exposição que têm é mesmo fantástico, parece que têm superpoderes. Quando me convidaram não fazia mesmo ideia e nem sequer sabia se ensinaria o capítulo um, cinco ou dez. Os meus planos eram começar por ensinar como é que brincamos ao faz de conta, mas rapidamente percebi que eles sabiam o que estavam a fazer.

A nomeação para um Tony, já duas vezes, mudou a sua vida?

Há duas coisas que uma nomeação para um Tony nos traz: primeiro, é vermos que os nossos pares estão a celebrar o trabalho que fizemos e, em segundo, é que passamos tanto tempo a sentir que estamos a perseguir uma presa, a tentar arranjar trabalhos e temos sempre de andar a correr, mas com a nomeação para o Tony tudo abranda e as pessoas querem-nos ao seu lado. Começamos a perceber que passa a haver pessoas que querem que estejamos nos seus espetáculos, antes até de sabermos sequer que vai haver audições. Esse é o verdadeiro prémio, quer se ganhe o Tony ou não, é saber que os artistas querem trabalhar connosco. Além disso, claro que é sempre uma espécie de sonho adolescente ser nomeado para um Tony, mas depois quando estamos lá sentados parece que nem é real. Vemos as pessoas com quem estamos nomeados e é incrível. Este ano, com Mrs. Doubtfire, estava nomeado na mesma categoria que Billy Cristal e Hugh Jackman. É mesmo fantástico. Para as pessoas que se arriscaram a deixar-me seguir este sonho, os meus pais e os meus avós, para eles poderem ver-me na televisão acho que deve ser motivo de felicidade. Pelo menos sabem que estou a conseguir fazer vida disto e que com isto pago as minhas contas.

"É fantástico ser convidado para estar aqui em Lisboa porque sinto-me quase um missionário dos musicais, é quase como estivesse aqui para evangelizar os musicais", diz Rob McClure, durante a conversa no Auditório da Biblioteca Municipal Orlando Ribeiro. Os alunos começam, entretanto, a chegar, e entre eles estão três jovens que ouvi cantar na véspera, quando o ator da Broadway deu uma primeira aula na sede da Junta de Freguesia do Lumiar. Comento com McClure que assisti ao momento em que Bárbara Dias, Maria Prata e Manuel Encarnação cantaram, acompanhados ao piano por Artur Guimarães, e que fiquei surpreendido pela qualidade, com o ator americano a concordar que os alunos que encontrou na MTL - Music Theater Lisbon são realmente talentosos. Bárbara, de 20 anos, cantou How to Return Home, do espetáculo Our First Mistake; Maria, de 23 anos, My Man, de Funny Girl; e Manuel, de apenas 15 anos, Proud of you Boy, de Alladin. Todos eles ambicionam ser profissionais da música (Maria já o é) e o grande sonho é irem além fronteiras, quem sabe pisar um dia os palcos da Broadway. A MTL, fundada por Martim Galamba em 2022, tenciona agora organizar em julho em Lisboa o primeiro Musical Theater Summit.

leonidio.ferreira@dn.pt

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