Música e vinho nos domínios de Vasco da Gama
Aos de Vila de Frades davam os antigos o nome de "farrapeiros". Fosse a designação fruto da altivez da vizinhança ou decorrente apenas do facto de aqui se ter alojado uma comunidade de religiosos mendicantes, o facto é que ela não convenceu El-Rei D. Manuel, o primeiro do nome, que, em 1519, ao conceder foral a estas paragens reservou para si o ralego, que é como quem diz o direito a vender primeiro do que todos os outros a parte de vinho que lhe cabia. De histórias da História como esta, cruzadas com Música, Património artístico e ambiental, gastronomia e vinicultura se fez mais um fim-de-semana da 18.ª edição do Festival Terras sem Sombra, que, de 13 a 15 de maio, se instalou em Vila de Frades e Vidigueira.
À beira da serra do Mendro, entre enormes talhas de barro, anuncia-se ao visitante que Vila de Frades (o país das uvas de que falava o escritor aqui nascido, Fialho de Almeida) é a capital mundial do vinho da talha, que ambiciona ser considerado património imaterial da Humanidade pela UNESCO. Salvo in extremis do desaparecimento, este processo de fabricar o vinho à moda dos romanos, que por aqui viveram há 2000 anos, está devidamente musealizado no Centro Interpretativo, inaugurado pela Câmara Municipal da Vidigueira em novembro de 2020, mas não se pense que estamos a falar de uma relíquia de tempos idos. O vinho da talha, dizem-nos, entusiasma os mais jovens e a prova disso mesmo são as adegas que funcionam paredes meias com o Centro Interpretativo. Aqui está a adega da ACV - Associação de Produção de Vinho da Talha, dirigido por Alexandre Frade, mas também o projeto Gerações da Talha, do jovem casal Teresa Caeiro e João Rocha, que preserva os modos de trabalhar e os segredos do bisavô e avô dela, respetivamente Francisco Anacleto e Arlindo Ruivo. Todos, mais novos e mais velhos, são unânimes em destacar o caráter totalmente artesanal de todas as fases de produção e Alexandre Frade lembra também que o vinho, como se de um jovem animal se tratasse, "deve ser conservado com a mãe até ao São Martinho"". Por mãe entenda-se a massa depositada na talha, onde estão cascas, engastes, grainhas. É ela que dá colo ao vinho até que este possa, enfim, apresentar-se ao mundo.
Também de vinho se falou no passeio de sensibilização para a biodiversidade que o Terras sem Sombra sempre promove nos lugares que visita. Neste caso, a escolha recaiu sobre a Herdade Aldeia de Cima, na serra do Mendro, local que separa o Alto e o Baixo Alentejo e onde, como notou Dinis Cortes, médico, tão apaixonado pela arqueologia local como pela observação de aves, "é possível encontrar vestígios de ocupação humana pelo menos até ao final do Neolítico". Aqui, numa vinha em socalcos que, em terras do Alentejo, lembra o Douro, são produzidas castas como Antão Vaz. Alicante Bouschet, Aragonez, Trincadeira ou Arinto. No mercado, já a conquistar atenções apesar da sua juventude (esta Herdade funciona há apenas quatro anos) estão os vinhos reserva branco e reserva tinto, Alyantiju branco e Alyantiju Tinto.
O esplendor renascentista desta paisagem, conhecido por Vasco da Gama, que o Rei tornou 1.º Conde da Vidigueira, foi evocado na Igreja de São Cucufate, em Vila de Frades, pelo Grupo Coral Os Cupertinos, dirigido por Luís Toscano, que interpretou polifonia sacra portuguesa do Renascimento e do Maneirismo, nomeadamente de autores como António Carreira, D. Pedro de Cristo, João Lourenço Rebelo e Duarte Lobo. O momento, como notou José António Falcão, diretor do Terras sem Sombra, marcou dois aspectos importantes: "por um lado, o regresso do Festival à normalidade anterior à pandemia, com a realização de espetáculos em igrejas e outros espaços patrimoniais de grande riqueza existentes no Alentejo" e, por outro, a cooperação com artistas provenientes de outras regiões do país. No caso dos Cupertinos (formado na Fundação Cupertino de Miranda, o que explica o nome) a origem é uma paisagem bem diversa - a cidade minhota de Vila Nova de Famalicão.
A próxima paragem deste Terras sem Sombra será o concelho de Castelo de Vide (28 e 29 de maio) e promete ser mais uma aventura dos cinco sentidos. No programa está uma visita ao Centro de Interpretação Garcia de Orta (um castelo-vidense no mundo), um passeio de observação de aves na barragem de Póvoa e Meadas e um concerto do Ensemble Bonne Corde.
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