"Muitos israelitas nunca foram à Palestina. É uma pena o medo e o desconhecimento"
Como foi viver dois meses na Palestina?
Foi muito intenso. Estive lá em 2014, durante o ataque a Gaza. Da Cisjordânia não se pode ir a Gaza, há um bloqueio, não se pode entrar. O facto de estar ali fez-me criar empatia e solidariedade com as pessoas, muito mais do que se estivesse tudo calmo. Sabemos que a qualquer momento tudo pode acontecer. Quando fui, não previa o ataque a Gaza, estava tudo mais ou menos calmo e de repente aconteceu.
Como circula a informação?
É tudo através do twitter, internet, facebook. A televisão para mim não dava porque não sei árabe. Só tinha os canais dali e não percebia nada. Liguei-me aos facebook, aos twitter das pessoas que estavam em Gaza, incluindo médicos dos hospitais. Vivi mais ou menos da mesma forma que eles. Também não dormi, também ouvi os helicópteros em cima da cabeça, como acontece em toda a Cisjordânia, a sentir que há uma subpotência em cima. Isso dos helicópteros não é propriamente assustador, dá uma certa raiva. E é impossível dormir porque se ouve estrondos a toda a hora.
Não dormia?
Tentava fazer tudo normalmente, punha o pijama e tudo. Mas percebi que ali não se dorme. Quando os palestinianos, sobretudo os que estão em campos de refugiados, dizem que vão dormir, isso não significa o mesmo que aqui. É ir encostar um bocadinho, porque a qualquer momento podem ter que sair.
Onde estava instalada?
Fui com o apoio da Fundação José Saramago, que me deu para começar o trabalho e a investigação. Depois concorri à Qattan Foundation que recebe artistas, tem uma pequena casinha um bocadinho isolada. Tinha frigorífico, fogão, podia fazer a minha vida normal. Inicialmente achei estranhíssima a forma como me acolheram, porque foi como se já me conhecessem há imenso tempo. Não era simpatia, era "Ah, queres vir cá trabalhar e perceber o que é isto? Está aqui a chave, desembrulha-te." Podia perfeitamente ter ficado em casa os dois meses.
O que fez?
Fui perguntando como se fazia, onde apanhava a camioneta, como me metia nos táxis, como ia daqui para ali. Acabei por fazer a vida tal e qual faz um palestiniano... enfim, mais ou menos, porque um palestiniano da Cisjordânia não pode ir a Jerusalém.
E foi?
Fui várias vezes porque ali sou estrangeira ali.
Mas era difícil?
A passagem é feita com os palestinianos que podem, os que têm identificação jerusalemita. Tive de passar o checkpoint Kalandi várias vezes, é duríssimo assistir ao que acontece ali. A primeira vez que o passei fiquei com uma raiva imensa porque um pai com uma criancinha ficou preso nos torniquetes. E ele estava na calma. Depois lá me aguentei, cada vez mais tensa e mais horrível. Uns dias a seguir, fui eu que fiquei no torniquete. Temos que nos bater na cara e dizer "isto não é normal", porque se estava a tornar natural para mim aquela forma de tratar as pessoas. São umas coisas de ferro como aquelas por onde vai o gado. Há uns miúdos de 18 anos que estão a fazer o serviço militar israelita que de repente decidem: "não é nessa fila, vão todos para a fila do lado". E tem que ir tudo para a fila do lado. Como estava ali, fiz exatamente a mesma coisa. Muitas pessoas irritam-se e gritam com eles. Mas é como estar no trânsito. É preciso uma pessoa bater-se para que se perceba que não é natural.
O que ia fazer a Jerusalém?
Tinha uns amigos em Jerusalém, o artista plástico Hani Amra, encontrava-me com ele, ia à livraria Educational Bookshop que é lindíssima, e que é fechada imensas vezes - é em Jerusalém Leste - roubam-lhes os computadores, roubam tudo. Nem sei como é possível terem aqueles livros ali, têm a banda desenhada do Joe Sacco, imensa coisa poderosíssima sobre a situação palestiniana.
Como é o dia-a-dia em Jerusalém?
Passeei pela cidade velha, tinha interesse em conhecer porque sou artista plástica e porque o início de muito da cultura ocidental está ali. Fui ver o Santo Sepulcro, o Muro das Lamentações, tentei ir à Mesquita mas não deixaram, porque nas entradas há seguranças israelitas. Perguntavam-me se sabia ler árabe, se era islamita. Eu não sabia nada, diziam "venha cá amanhã".
Em Ramallah conseguiu pintar?
Comecei a fazer o trabalho cá, antes de ir.
Tinha uma ideia do que ias fazer?
Tinha uma ideia e depois mudei porque era bastante idiota e infantil, acho eu agora. Eu tinha inventado que ia fazer umas pinturas muito bonitinhas, com umas pessoas pequeninas, naquelas cores que imaginava da Palestina, em óleo sobre papel.
Que cores eram?
Uns ocres e de vez em quando uns verdes, cor de terra, e uns céus. Mas senti a estranheza de estar a falar de um tema que não me dizia respeito diretamente, uma coisa que eu não sabia, não conhecia. Estava a falar de um tal "outro".
O tema inicial era a vida na Palestina?
Era: de onde vem a força para o trabalho de um artista palestiniano que nasceu e já passou por três guerras pelo menos - mais até, porque um miúdo de dez anos já passou por três. Se aquele trabalho é político, se querem fugir ao tema. Descobri que dizem que querem fugir mas é totalmente impossível e reconhece-se sempre a problemática.
Conseguiu perceber como se sobrevive?
Com imenso sentido de humor e um sentido enorme de certeza de terem razão, por mais que morram que nem tordos. "Nós estávamos aqui". Qualquer pessoa ali tem a capacidade de ter um grande sentido de humor. Não conheci nenhum israelita que o tivesse. Tenho uma amiga tradutora de poesia e há qualquer coisa nela (não sei se só eu vejo) de culpa e de não querer saber. "O melhor é não saber nada disto". Muitos israelitas, mesmo de Jerusalém, nunca foram à Palestina, não conhecem, e moram ali há anos. Sentem que vem lá um árabe com um sabre e vão ser degolados. É uma grande pena, o desconhecimento e o medo. As crianças aprendem na escola que os árabes são perigosos. Não há palestinianos, são árabes. Aliás, há uma deputada no Knesset que cada vez que diz que é palestiniana vai presa, tem de dizer que é árabe. Mas descobri lá que não há isso do "outro". O sentido de solidariedade apoderou-se de mim. Tinha de saber expor de forma a dar o sentimento de solidariedade que há entre as pessoas, a beleza que existe no humor e na terra e na maneira de tratar as pessoas. E a dureza de um muro em frente ao nariz.
Daí a ideia dos animais que batem numa parede?
O título Animal"s Nightmare é tirado de um livro da Suad Amiry, uma escritora palestiniana, Nothing to Loose But Your Life, que não está traduzido em Portugal, o que é uma pena porque é o quotidiano de um palestiniano que vai trabalhar para Israel.
Conheceu a escritora?
Ela é ótima e tem imenso sentido de humor. Nesse livro não, mas ela tem um outro - Sharon and My Mother-in-Law, que está traduzido em português. Esse, sim, é muito engraçado porque ela sente-se prisioneira de Sharon e também da sogra em casa. Eu roubei a história do Animal"s Nightmare, onde ela fala da problemática da biodiversidade, do que acontece aos bichos por causa do muro, o que acontece a uma gazela que vá de encontro a um muro, onde estão os bebés da gazela? Veio daí a ideia de fazer os bichos e as pessoas em forma de bichos, pinturinhas muito bonitas.
E pintou uma série de pás. Como se as pessoas fossem tratadas como lixo?
Sim. O que está pintado nas pás são personagens dos Desastres de Guerra de Goya. Uma das pinturas chama-se Yo lo vi, e eu, de certa forma, também vi. Roubei as personagens e fui pondo. Enquanto estive na Cisjordânia aconteceu aquela história de um tipo louco, alemão [piloto Andreas Lubitz lançou para o solo, nos Alpes, um avião da Germanwings, Lufthansa, matando as 150 pessoas a bordo, 24 de março de 2015]. Vi isso na televisão árabe e no facebook de toda a gente. Quando os corpos foram recebidos no aeroporto, estava tudo fardado, os caixões com bandeiras, uma dignidade imensa. E ao mesmo tempo estava a acontecer o ataque a Gaza onde morreram mais de 2100 pessoas. Isso bateu-me forte. Temos que estar cientes sempre disso: como pode haver uma diferença tão grande de um lado para o outro? Quem é mais importante do que quem? Porque é que a dignidade não está em toda a gente?
Chegou a alguma conclusão?
Como artista plástica, ou fosse eu o que fosse, não podia não me interessar pelos direitos humanos e não pensar sempre politicamente. Não gosto de arte panfletária, não me interessa, nem sei para que serve. Quis encontrar uma forma de dar a conhecer a minha opinião e os meus sentimentos sem nada escrito. No livro há um texto. Gosto do livro porque, embora tenha um formato normal, é um livro redondo, não tem fim. E trilingue - português porque eu sou portuguesa e porque é editado em Portugal; inglês para poder ir para o resto do mundo; e árabe para poder chegar à Palestina. O que seria o suposto fim do livro é o início da parte árabe.
Nasceu em Lisboa. O que aconteceu para ir parar a Avis?
Uma loucura muito grande. Estava tudo muito caro e eu tenho a mania de que as minhas filhas não têm nada, não tenho uma casa, não tenho nada para lhes deixar. Num sábado de início de primavera comprámos o jornal e começámos a ver casas. Era tudo um balúrdio em Lisboa e apareceu: "Avis, seis mil contos". Está um dia tão bonito, vamos telefonar. E fomos a Avis.
Não tinham à partida a intenção de ir para lá, foi um acaso?
Eu nem sabia bem onde era Avis, os avisenses que me perdoem porque eu hoje sou completamente avisense, eleitora e tudo. Mas na altura não sabia, até perguntei qual era a praia mais perto. Disseram-me que é a Costa da Caparica.
Há umas barragens.
Há a barragem do Maranhão que é muito bonita. E foi uma paixão, a casa era lindíssima, uma ruína completa, ficou alguns anos assim e eu achava que ia cair tudo. Conseguimos descer o preço, ficou em quatro mil contos. Tem um quintal, é muito simpática, com vista para o Maranhão. Durante muito tempo ficou uma casa de fim-de-semana. Até que decidimos: é preciso mudar de vida. E fizemos as malas. Fiz uma exposição à câmara municipal sobre quem eu era e o que fazia na vida, e se em Avis não havia um barracão, uma coisa qualquer podre, porque trabalho muitas vezes com coisas grandes. Mostraram-me um espaço divinal, nem sabia como trabalhar ali.
Era demasiado bom?
Era lindíssimo. E é - vou abri-lo em maio. Chamei-lhe Oficina Mundi porque é o ateliêe porque queria muito receber artistas, uma coisa nada complexa e fazível porque sou eu que vou tratar disso. No máximo dois meses durante o ano, um artista ali comigo a trocar ideias, a fazer um projeto se tiver um projeto para fazer. E depois mostrá-lo às pessoas dali e de fora, para acontecer arte contemporânea naquele sítio com regularidade. E para mostrar também o meu trabalho. E desmistificar um bocadinho a coisa da arte contemporânea, de que os artistas são todos esquisitos, malucos. Nós também temos de comer, também vamos à casa de banho.
E como é que Avis a acolheu, além de a Câmara ter disponibilizado esse espaço?
Muito bem. Isso foi genial porque o espaço é no convento de São Bento de Avis, do século XIII, lindíssimo. São dois andares, é mesmo muito bonito. Espero que aconteçam lá coisas bonitas, estou agora a mudar para lá. E já estou no próximo projeto.
Que projeto é?
O mar. Tive apoio da Gulbenkian para fazer o trabalho e, como na Palestina, fui num cargueiro para o Oceano Atlântico. A ideia inicial era o mar como não lugar, uma coisa bonita, e o facto de ter ido no cargueiro também alterou imenso.
Conte-me essa experiência no cargueiro. Ia à procura de quê?
O mar como lugar onde nascem e morrem pessoas, onde trabalham pessoas, e não como uma estrada de passagem. Queria ver o espaço e a dimensão humana num espaço tão grande. O nosso tamanhinho naquele sítio. Dá para ver como somos pequeninos e como um cargueiro também é minúsculo, porque não se vê mais nada. Apanhei um mar ótimo.
Não apanhou ondas enormes?
Apanhei só uma onda e fiquei a pensar que se tivesse ido noutro mês tinha sido uma loucura. Não é o balancear do navio, é uma estalada enorme, uma coisa de loucos. Deu para pensar. O facto de ser um cargueiro levou-me outra vez para uma coisa mais concreta. É um navio de comércio: o que é que vai dentro daqueles contentores, vai para onde, vem de onde, que outros navios destes há, onde estão sediados? Há muitas histórias. E outra vez os direitos humanos. Passa-se muita coisa no mar de que não damos conta.
Por exemplo?
Eu imagino que muitos dos navios que estejam junto da Índia e sobretudo da China, no oriente, têm trabalhadores não sei em que condições. Há um fotógrafo que fez um bom trabalho sobre isto, o Allan Sekula, e há também uma artista iraniana, Laleh Khalili, que vive em Inglaterra e tem um trabalho interessante sobre o comércio nos navios. Por onde vão as armas? Não vão de avião, não são as cegonhas. Vão nos navios. A história de todas estas guerras na Síria está nos cargueiros. Não sou nenhum inspetor da Polícia Judiciária mas tenho algum interesse em saber o que se passa no mar. Sinto que estou atrasadíssima, porque acho que estou sempre atrasada, nasci já atrasada.
Tem sempre essa sensação?
Tenho. Aos 18 lembro-me da primeira sensação de depressão: tenho 18, que horror, ainda não fiz nada! Não quis fazer festa. Tinha muita coisa cá dentro para fazer.
Está atrasada em relação a este trabalho?
Estou efetivamente atrasada, tenho de entregar o relatório na Gulbenkian e já tenho mais do que trabalho para o relatório. O trabalho ainda não está concluído nem sei como vou concluir. Isto do atraso é bom, é porque tenho coisas para fazer. É como os erros: errar é excelente porque posso fazer outra vez, ou outro trabalho, ou por cima.
Por que é que a questão do erro se coloca depois da sua estadia em Nova Iorque?
Fui também com o apoio da Fundação Gulbenkian. Estive lá seis meses numa altura muito importante da minha vida. Eu já estava cansada, o meu trabalho era sempre sobre mim, o meu umbigo, as mulheres. Eu nem sabia bem o que era. Era um impulso de fazer coisas e fazia, mas acabava sempre por ser umas mulheres e uns pés, umas coisas. Tinha a ver comigo e com o que eu conhecia. E em Nova Iorque abriu-se-me um horizonte muito grande. Foi a primeira vez na vida que estive sozinha mais do que dois dias. Nunca tinha estado sozinha, só aos 40 anos.
Teve duas filhas muito cedo.
Sim, tinha 22 quando nasceu a Carolina e 25 quando nasceu a Constança. Em Nova Iorque percebi que não fazia mal fazer coisas mal, porque depois fazia outra vez. E vi tanta coisa. Ainda devia estar naquela ideia idiota de fazer uma coisa perfeita. Abomino a ideia da perfeição, aliás gosto que se sinta a minha mão nas coisas. As coisas não estão perfeitas, estão por vezes mal desenhadas, mal arranjadas, mal amanhadas.
Como foi parar às artes plásticas?
Fiz a escola António Arroio, e um bocadinho do Ar.Co. Na António Arroio fiz um atelier livre com o professor Pedro Morais, que tem agora uma exposição no Pavilhão Branco do Museu da Cidade. Depois fui trabalhando, cada vez com mais dificuldade e resistindo sempre, porque uma pessoa sabendo que é isto que quer e que tem de fazer tem esta resistência. Com duas filhas, as coisas tornaram-se um bocadinho mais complicadas. Só saí aos 40 justamente porque já podia. Devo ser um bocado mãe-galinha, pelo menos acusam-me disso.
E tem pena?
Não, espero que lhes tenha dado coisas boas. Já sei que a culpa é sempre das mães, tanto me faz. O meu amor é incondicional, dei o meu melhor e fartei-me de errar com certeza. Não é nada que não lhes tenha dito. Quando erro peço desculpa, assim como quero que me peçam desculpa quando alguma coisa correu mal.
É irmã da Teresa Villaverde [realizadora de cinema] do Manuel Villaverde [História da Arte], todos virados para a cultura. Quando estão juntos falam disso? Andaram à pancada quando eram pequenos?
Sim, muitas portas partidas. Tudo normalíssimo como qualquer família. Falamos mais agora. Sempre acompanhámos muito os trabalhos uns dos outros. Eu sou a mais nova e com alguma distância, os meus irmãos sempre me trataram como a miúda pequenina, e eu sempre com muita vontade de saber o que dizem. E dizem sempre bem. Uma vez a minha irmã disse-me qualquer coisa como "mas por que é que estás a fazer isto?". Eu tinha ateliê em casa, em Campo de Ourique, e ela viu aquilo e impressionou-se, não gostou. Mas depois em exposição, na Sala do Veado, disse que era muito bom. Estou sempre à espera de saber o que os meus irmãos mais velhos dizem sobre o meu trabalho. Sei que também gostam de saber o que eu acho do trabalho deles, embora nunca mo tenham dito.