"Muita da criminalidade económica prosperou no País à conta da distração com a Casa Pia"

Em entrevista ao DN, dias depois de o Tribunal dos Direitos do Homem ter decidido a favor do seu cliente, Carlos Cruz, em apenas num ponto do processo, Ricardo Sá Fernandes volta a falar do processo Casa Pia, definindo-o como uma fantasia, da sentença de 2010, em que critica a fundamentação, dos jovens envolvidos e dos protagonistas. O advogado fala ainda da relação de amizade que construiu com Carlos Cruz e da pessoa que "passou pelo outro lado da vida". "Carlos Cruz é hoje melhor pessoa do que quando o conheci em 2003", diz.
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Foi um processo que levou anos a investigar, o que é que isso mudou na sua vida?

Em primeiro lugar, o tempo tomado. Segundo, o impacto do processo. Talvez as pessoas não tenham memória disso, mas este caso teve uma projeção mediática talvez equivalente ao processo Sócrates. Nunca tinha havido nada assim. Foi absolutamente avassalador. Tomou conta do país, distraiu o país. Acho que muita da criminalidade económica que prosperou durante os anos 2000 foi à conta da justiça andar distraída com o processo Casa Pia. E depois obrigou-me a fazer investigações pessoais que nunca tinha feito, como ir aos locais procurar pessoas. Não tínhamos outra maneira de fazer.

Investigou, recolheu material, reconheceu locais, tirou fotografias, ouviu pessoas, fez tudo sozinho?

Fiz sozinho. Em algumas diligências fui acompanhado pelo Dr. Serra Lopes. Lembro-me de que a primeira vez que fomos ao prédio da Av. das Forças Armadas, onde supostamente ocorreram os abusos, o Dr. Serra Lopes tinha uma máquina fotográfica muito sofisticada, ele adora gadgets, mas não foi capaz de trabalhar com a máquina e usámos a Polaroid que tinha levado. Ainda tenho aqui as fotos.

Quais fotos?

Da casa de uma senhora enfermeira, onde supostamente o Carlos Cruz teria abusado de um jovem. Das portas do andar de baixo, que eram todas iguais, e da porta da vizinha da dita senhora enfermeira, que tinha uma porta diferente, um dos rapazes quando identificou o local disse que se lembrava perfeitamente do andar porque havia duas portas diferentes. Ele tinha entrado pela porta escura igual às dos outros andares. Mais tarde vim a saber pela investigação que fiz que esta porta tinha sido mudada anos depois da dita data em que ele supostamente teria sido abusado. Ele estava a construir uma história.

Ele quem?

O Francisco Guerra. É uma figura absolutamente extraordinária, que salta de mentira para mentira. Portanto, chegou lá e construiu uma história, mas a mentira tem perna curta. Mas naquele prédio há outra porta célebre por onde ele dizia que o Carlos Cruz teria entrado. Na altura em que ele foi ao prédio com a polícia, essa porta estava aberta e dava para uma empresa de estafetas. Na altura em que os abusos terão acontecido, vim a saber que a porta estava fechada. Mas a ser verdade, o Cruz teria de ter um cúmplice na empresa que lhe fosse abrir a porta quando ele lá fosse de noite. As fotografias e o que vim a apurar deram para perceber como tinha sido fantasiosa a construção do processo, em que quase nada é verdade.

Mas que outras diligências foram feitas?

Andámos a bater à porta das pessoas para saber se conheciam o Carlos Cruz, se alguma vez o tinham visto por lá, fizemos muita investigação deste género, porque tivemos de desmontar cada um dos locais que o Francisco Guerra foi apontando. Ele apontou esta casa como podia ter apontado a minha ou a sua, foram apontadas aleatoriamente.

Foi ele que construiu a história?

Foi o Francisco Guerra, que dizia ser o braço direito do Carlos Silvino, Bibi, que andou com a polícia em janeiro de 2003 a apontar os locais dos ditos abusos. Resolveu ir a Elvas, provavelmente porque foi lá uma vez com o Silvino e lembrou-se de que o advogado do Silvino era advogado de lá, e apontou a moradia da D. Gertrudes, não sei se é viva ou não, onde não se passou o que quer que fosse. Aliás, ninguém foi condenado pelos crimes de Elvas.

Mas a ideia de que havia uma rede que envolvia pessoas da comunicação social, políticos, médicos, etc, foi lançada pela Dra. Teresa Costa Macedo em direto num programa de televisão...

A personagem da Dra. Teresa Costa Macedo é também absolutamente fascinante neste processo. Quando a jornalista do Expresso Felícia Cabrita teve acesso às informações sobre o Carlos Silvino organizava um programa de televisão - revi-o uma dúzia de vezes e agora para a revisão do processo vou revê-lo de novo - e andou a recolher depoimentos de homens de várias gerações da Casa Pia que tinham denunciado abusos e nada tinha acontecido. E uma denúncia foi feita pelo relojoeiro, Américo, à Dra.Teresa Costa Macedo, na altura provedora, que justiça lhe seja feita,que a encaminhou para a PJ. Mas achou que o relojoeiro devia ter seguido as vias competentes e não a enviar para ela. O Américo naturalmente achou isto inacreditável, e com toda a razão. De maneira que, quando falou com a Felícia Cabrita, estava muito indignado com a Dra. Teresa Costa Macedo, que, quando foi ao programa da Felícia e lhe começam a dizer que era responsável por esta situação teve um instinto de defesa e diz: "Mas vocês estão em cima de mim e não investigam as pessoas da comunicação social e da política que estão envolvidas nisto?" A meio do programa dá um papel à Felícia Cabrita, que está junto ao processo, com o nome de pessoas que ela saberia estarem envolvidas. Em poucos dias toda a gente queria saber quais eram os nomes. Os primeiros a aparecer foram os do Carlos Cruz e do Jorge Ritto. Mas nesse programa estava um diretor da Casa Pia, que era inimigo do Manuel Abrantes, e disse que o Silvino era protegido deste. Há três pessoas que são entregues à morte neste programa : Carlos Cruz, Jorge Ritto e Manuel Abrantes. Depois aparece o do Ferreira Diniz, porque era médico da Casa Pia, sabia-se que era homossexual e que em sua casa vivia um jovem da instituição.

E surgiram outros nomes...

O primeiro nome que aparece escrito num papel pelo Francisco Guerra é o nome do Paulo Portas, mas certo é que o nome do Dr. Paulo Portas cai. Nunca mais se fala dele e vira-se para outro lado. Provavelmente, para pessoas que o Francisco Guerra conhecia porque eram do órgão que tutelava a Casa Pia, como o Ferro Rodrigues e Paulo Pedroso.

Mas houve denúncias de abusos...

Houve uma tomada de consciência de que havia abusos na Casa Pia.

E de que havia vítimas...

E de que havia vítimas. O país tomou consciência de que havia abusos na Casa Pia. É um dado absolutamente incontornável. Isto escandalizou tanto o país que criou um inconsciente coletivo de que se houve abusos, alguém abusou. É preciso as pessoas terem noção de que o Carlos Cruz, o Ferreira Diniz, o Hugo Marçal e o Jorge Ritto só aparecem no processo depois de os seus nomes surgirem na comunicação social.

Aparecem porquê?

A história do Carlos Cruz e do Jorge Ritto aparece porque nos anos de 1980 tinha havido uma fuga de um jovem da Casa Pia para casa do Ritto e dizia-se que o Cruz frequentava essa casa. Foram os primeiros a serem lançados para a fogueira

E houve denúncias escritas...

Sim. Além da célebre carta anónima com nomes de pessoas, houve jovens que denunciaram o general Ramalho Eanes e o professor Marcelo Rebelo de Sousa, Jaime Gama e outros. Estão lá no processo. Foram denúncias absolutamente infundadas e absurdas.

Ficou só um núcleo...

Sim, ficou o grupo inicial. A partir de janeiro de 2003, três ou quatro dos jovens, que terão sido vítimas de abusos, referem sempre os mesmos, o que leva a acusação a fundar-se nestes nomes. Quanto aos outros, percebeu-se rapidamente que eram manifestamente inconsistentes. Se me perguntar se acho que o Ministério Público e a policia fabricaram isto, claro que não.

Então o que acha?

Os nomes foram ganhando consistência. O Carlos Cruz era fácil de perceber. Era a pessoa que, juntamente com Mário Soares, tinha maior notoriedade no país. O Jorge Ritto e o Ferreira Diniz eram homossexuais e davam muito jeito neste contexto. O Manuel Abrantes era a pessoa que protegia o Silvino, o Marçal o advogado do Silvino... tudo isto parecia ter uma lógica. Só que, se isto tivesse sido feito com seriedade, perceber-se-ia rapidamente que nada tinha lógica. Quem tenha o mínimo de experiência em processos de abuso sexual sabe que são de prova muito difícil. Mas se fosse verdade que estas pessoas estavam envolvidas numa rede tinham de ter aparecido provas materiais que os ligassem...

De que tipo?

Recolheram-se todas as chamadas de telefone e estas pessoas nunca contactaram umas com as outras. O Cruz não tinha registo de nenhuma destas pessoas. Poder-se-á dizer que eles tinham telefones só para isto. É uma hipótese, mas temos de ir aos locais. Conseguiu percebe-ser alguma relação entre estas pessoas? Não. O que rapidamente se percebeu é que nestes locais nada se tinha passado. Depois houve locais que desapareceram, eram num sítio e depois já não eram.

Neste processo foi tudo fantasia? Há alguma razão?

Há alguma razão. Estes jovens foram vítimas de abusos. Acho que há um papel do Carlos Silvino, não sei se na dimensão em que está no processo, porque acabou por ser condenado por muitos mais crimes do que aqueles que efetivamente acredito que fez. O Carlos Silvino foi o instrumento que permitiu ligar tudo. A certa altura disse que era o Carlos Mota, motorista do Cruz, que ia deixar uns papéis ao porteiro da Casa Pia, um senhor Graciano Nunes. Só que à data destes factos já não estava na Casa Pia, mas internado num lar. Durante o julgamento fazia sempre a pergunta: "Conhece o Sr. Graciano Nunes?" E ninguém conhecia, a não ser duas ou três pessoas mais antigas que disseram ser um porteiro dos anos 1980. Isto era completamente fantasioso.

Quem fantasiou?

Isto foi inventado por uma mente fascinante. Esse rapaz Francisco Guerra que conseguiu convencer dois antigos colegas de quarto, que são as três pessoas que estão no centro do processo, a entrarem nisto.

Acredita que a sentença estava definida muito antes?

Acredito que na cabeça dos juízes a ideia de que iam condenar há muito que estava definida. Mas a sentença é um exercício absolutamente fascinante de ler. Alguém que se dê ao trabalho de ler aquelas duas mil e não sei quantas páginas percebe que quem a fez está completamente sem norte no seu raciocínio. Não tenho nada contra os senhores juízes que a fizeram. Provavelmente decidiram de acordo com aquilo que achavam em consciência, mas a sentença demonstra o desnorte que ia naquele tribunal. Em momento nenhum pus em causa que os juízes estivessem de má-fé. Agora o seu inconsciente estava tomado pelo vírus que tomou conta do país. Inconscientemente, eles achavam que, perante um escândalo daqueles, não podiam deixar de condenar as pessoas. Foram levados por uma febre que tomou conta do país, que distraiu o país e que levou à condenação de pessoas.

Que vírus é esse?

Não há nada de mais horroroso para uma comunidade do que o abuso sexual de crianças. Não é por acaso que os abusadores são punidos nas prisões e perante um abusador todos estamos contra. É a linha vermelha que ninguém admite, e por isso é muito fácil incendiar uma comunidade para uma situação de abusos sexuais. Sobretudo quando se trata de jovens entregues a uma instituição do Estado, que deveriam estar protegidos. E quando do outro lado estão pessoas com uma certa projeção na comunicação social, na política, embaixadores e médicos, as pessoas sentem uma raiva enorme para que se faça justiça. E isso às vezes cega as pessoas. Foi o que aconteceu.

Foi um caso construído sem intenção?

Sim, sem que ninguém tivesse tido intenção. Tenho dito constantemente que acredito que nem os procuradores que investigavam o processo nem os juízes que o julgaram, nem outras pessoas proeminentes, ou os jornalistas que se empenharam na perspetiva da acusação acreditavam piamente nisto. E isso é que é terrível.

Pensa que algum dia essa ideia será desfeita?

Não tenho a mais pequena dúvida de que um dia será. A minha única dúvida é se isso será útil para os arguidos. É uma história fantasiosa, não tenho dúvidas. Agora, se conseguirei demonstrar isto no processo, que um tribunal venha a declarar a inocência do Carlos Cruz e de outros, já não sei. Não sou eu o juiz. Até agora as coisas tinham corrido mal, mas agora, com a decisão do Tribunal Europeu, espero que tenham passado a correr bem...

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