MP abriu 15 novos inquéritos na Amadora

O julgamento de 17 agentes da PSP de Alfragide, acusados de tortura e racismo, arranca amanhã
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O Ministério Público (MP) da Amadora abriu no último ano 15 novos inquéritos que envolvem violência policial, a maioria contra cidadãos de raça negra. Ofensas à integridade física qualificada e abuso de poder são os crimes de que são suspeitos agentes da PSP. Desde a acusação contra os 18 polícias da esquadra de Alfragide, por crimes de tortura, sequestro, injúria e agressões com motivação racista contra seis jovens da Cova da Moura, que o Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) daquele concelho tem escrutinado à lupa denúncias que no passado tinham como destino, na sua maior parte, ou o arquivamento ou as vítimas eram alvo de processos por agressão e ofensa às autoridades.

Um dos casos que aconteceu em fevereiro de 2017, que o DN já noticiou, é o de Avelino Soares, um cabo-verdiano de 50 anos, que se recusava sair da sua casa no bairro Seis de Maio, foi levado para a esquadra e espancado, tendo ficado hospitalizado três dias. O MP enviou este e, pelo menos, uma dezena de outros inquéritos desta natureza para a Unidade Nacional de Contraterrorismo (UNCT) da Polícia Judiciária (PJ), que foi quem conduziu a investigação à esquadra de Alfragide que resultou na grave acusação.

O julgamento de 17 dos 18 polícias de Alfragide (uma subcomissária foi, entretanto, despronunciada) arranca amanhã. Não é só a palavra de Flávio, de Celso, de Miguel, de Rui, de Paulo e de Bruno - os seis jovens agredidos naquela esquadra a cinco de fevereiro de 2015 - que vai estar em confronto com a dos agentes, que negam todas as acusações. Vai estar também exposta naquele tribunal uma realidade há muito denunciada pela comunidade deste e de outros bairros, por organizações de defesa de direitos humanos, como recentemente o Comité contra a Tortura do Conselho da Europa, sobre a violência policial contra africanos e afrodescendentes. Em entrevista exclusiva ao DN, um operacional do Corpo de Intervenção da PSP, que está a concluir uma tese de mestrado sobre a ação da polícia nas designadas zonas urbanas sensíveis, denuncia o silêncio das hierarquias quando detetam atitudes racistas e xenófobas dos seus agentes."Há elementos das várias forças de segurança que exteriorizam os sua ideias racistas e xenófobas, usam tatuagens e simbologias "neo nazis", pertencem a grupos assumidamente racistas, isto é do conhecimento de todos e infelizmente as organizações nada fazem para expurgar estes "tumores" do seio das forças de segurança. Pergunte-se à IGAI, à PSP, à GNR, à Guarda Prisional ou a qualquer outra força, o que fazem quando são detetadas estas situações? Nada, não fazem nada", garantiu.

Flávio Almada deseja que este julgamento "contribua para romper a cortina de silêncio que tem pesado sobre esta realidade". Monitor da Associação Moinho da Juventude, da Cova da Moura e a concluir uma tese de mestrado no ISCTE, tinha sido algumas vezes elo de ligação entre a comunidade e a PSP. Ele e os outros jovens tinham ido à esquadra para saber de Bruno, detido no bairro momentos antes. O desfecho, para ele e para os outros, é conhecido. Segundo o MP, foram detidos ilegalmente dois dias, violentamente agredidos e humilhados. "Nunca vou esquecer a cara do agente que nos disse que se pudesse exterminar-nos-ia todos. É um ódio que nos têm e que não sei explicar", recordou na altura ao DN. Ainda hoje, por vezes, os jovens com quem trabalha no Moinho o questionam. "Perguntam como é que aconteceu aquilo a alguém tão "quieto" como eu. Eu digo "estudem que um dia vão perceber". Eles já conhecem esta realidade mas estranharam que até eu tenha sofrido o mesmo. Digo-lhes "estão indignados? Utilizem a indignação e estudem. A sociedade não funciona e está contra vós? Estudem e vão perceber como pode funcionar a vosso favor"".

Celso Lopes, que também pertence ao Moinho da Juventude, foi atingido à queima-roupa numa perna por uma bala de borracha. Nota-se ainda a dor no seu olhar quando recorda aquele dia, numa curta conversa, na passada sexta-feira, na Praça do Comércio, junto ao Supremo Tribunal de Justiça, local que admite ter escolhido pelo "simbolismo" do que aspira neste julgamento. "Não fiquei só marcado para sempre na perna com esta cicatriz feia. Marca-me também para sempre a maldade. Não havia necessidade de nada daquilo. Só íamos lá dialogar", reitera.

Lúcia Gomes, advogada dos seis jovens, que estão neste julgamento como assistentes e só deverão ser ouvidos depois dos 17 polícias, espera que "este processo seja exemplar, que demonstre a toda a sociedade que este tipo de comportamento não é aceitável. Um cidadão não pode correr o risco de se aproximar de uma esquadra e ser brutalmente violentado em função das suas características, neste caso, étnicas, mas que podem envolver outras. Aquilo pelo qual nos vamos bater é que seja feita justiça e que inequivocamente sejam reparados os danos e prevenidas futuras situações para que não se repitam casos destes.

Do lado dos polícias, Gonçalo Gaspar, advogado do Sindicato Unificado de Polícia, que defende 16 agentes e um chefe, garante que "tudo será contextualizado, incluindo o uso da força em resposta à resistência dos jovens, quando estavam a ser detidos por tentativa de invadir a esquadra". Promete provar que aqueles agentes "não são racistas", são "bem preparados e alguns até condecorados". Nenhum destes polícias se encontra já no comando da Amadora. "É sem dúvida um processo complexo. Nunca houve tantos polícias acusados ao mesmo tempo de tantos crimes. Há a tentação de olhar para todo este caso de forma apaixonada e ideológica. Mas nem a paixão nem a política devem ser confundidas neste caso e estamos certos que o tribunal também pensará assim", assevera Gonçalo Gaspar.

Mas é mesmo por "uma questão ideológica, contra a violência policial" que, assegura Nuno Bio, do Observatório contra a Repressão, que este julgamento vai ser acompanhado de perto por esta organização, que foi a primeira a chegar à esquadra de Alfragide no dia dos incidentes. Tem sido o Observatório a dar apoio financeiro para algumas custas judiciais e, principalmente tratamentos médicos de sequelas que obrigaram a tratamentos regulares. Foi também o Observatório o primeiro a contradizer publicamente, no seu site, a versão da alegada tentativa de invasão da esquadra. "Temos consciência que agressões gratuitas como aquelas são o dia a dia daquelas pessoas. Mas esta atingiu uma dimensão maior, não só pelo número de vítimas e polícias envolvidos - a esquadra inteira - mas pelo tipo de pessoas que foram agredidas, como o Flávio e o Celso da Associação Moinho da Juventude. Este processo deve ser um ponto de reflexão para a sociedade e para a própria polícia", afirma Nuno Bio.

O MP da Amadora está a dar os primeiros passos a trabalhar em conjunto com a PSP, analisando caso a caso, investigando as denúncias e questionando os autos de notícia da polícia. E, principalmente, a não dar nenhuma verdade como a única, logo à partida. Mas a nível nacional a Procuradoria-Geral da República e o governo já assumiram não ter estatísticas trabalhadas de forma a conhecer a fundo o fenómeno da violência policial. No seu último relatório sobre Portugal, o Comité contra a Tortura relatou que pediu esses dados às autoridades portguesas e ficou sem resposta.

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