Moscovo ataca na Síria, mas alvo não foi Estado Islâmico

Caças-bombardeiros russos atacam alvos islamitas, diz o Kremlin. Oposição garante que as suas forças é que foram visadas.
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Aviões de combate russos intervieram ontem pela primeira vez na guerra civil síria, tendo atacado alvos de forças "terroristas". Segundo Moscovo, foram destruídos "equipamentos militares", "armazéns de armas, munições e combustível" do Estado Islâmico (EI). Mas a França e os Estados Unidos garantem não ter sido o caso, pois os ataques foram realizados em áreas onde não é predominante a presença do grupo islamita, como Lataquia, Homs e Hama, mas onde estão ativos grupos da resistência ao regime de Bashar al-Assad, como o Exército Sírio Livre (ESL) ou a Frente Al-Nusra, islamita, mas adversária do EI.

Dirigentes ocidentais como o MNE britânico, Philip Hammond, ou o seu homólogo alemão, Frank--Walter Steinmeier, pediram a Moscovo para esclarecer dúvidas sobre a operação para que "não causem maiores mal-entendidos", lê-se numa nota do responsável da diplomacia de Berlim.

Dmitri Peskov, o porta-voz do presidente russo, admitiu implicitamente que as operações aéreas ontem iniciadas não visavam exclusivamente o EI. Quando interrogado se os ataques seriam confinados ao EI, Peskov respondeu que o objetivo "é o combate ao terrorismo e o apoio às legítimas autoridades da Síria na sua luta contra o extremismo" e interrogou-se: "O ESL ainda existe? Não se passaram todos para o EI?" Uma resposta clara.

Um porta-voz do Ministério da Defesa da Rússia, citado pela Russia Today, afirmou terem sido visados "oito alvos do EI e realizados um total de 20 voos". Estes foram realizados seguindo informações "fornecidas pelos militares sírios, e foram evitadas infraestruturas civis e os locais onde estes residem", garantiu aquele porta-voz. Participaram no ataque caças-bombardeiros Su-24, que operaram a partir da base de Lataquia, onde aquele aviões chegaram recentemente.

Os comentários feitos por responsáveis americanos assim como pelo ministro da Defesa francês, Jean-Yves Le Drian, são confirmados por fontes no terreno citadas pelo Observatório Sírio dos Direitos Humanos (OSDH) e elementos dos grupos atacados.

Um porta-voz do OSDH, citado pela Reuters, afirmou que 27 pessoas morreram, entre as quais cinco mulheres e seis crianças, nas localidades de Al-Rastan, Talbisah e-Zafaraaneh, todas a norte de Homs, onde vários grupos da oposição resistem às forças fiéis a Damasco. Um ativista de Homs, Bebars al-Telawi, em conversa via Skype com um jornalista do Daily Telegraph , revelou terem-se realizado voos de reconhecimento na quarta-feira. "[Ontem], os aviões não vieram da direção de Hama, onde o regime tem bases. E é daí que vinham habitualmente. Os aviões eram diferentes (...) e atacaram num local" onde não há presença do EI. Os islamitas na região de Homs controlam Palmira e Qaryatayn. Quanto a Hama, um comandante do ESL, o major Jamil al--Saleh, que desertou das forças pró--Assad em 2012, garantiu à Reuters, via Skype, terem sido posições deste grupo a serem alvejadas. "A região norte de Hama está livre da presença" do EI "e sob nosso controlo", disse o militar. Para Al-Saleh pode haver uma razão para o ataque a posições do ESL na província: o grupo está equipado com mísseis antitanque, que são uma poderosa arma para deter ofensivas de blindados do regime de Damasco. As posições do ESL foram atacadas duas vezes e "em cada um dos ataques foram disparados oito a dez mísseis (...). Não há forma de ter sido um erro", disse aquele chefe militar.

Os primeiros comentários políticos feitos na Europa e nos EUA vão no mesmo sentido. Para o ministro da Defesa francês, "as forças russas atacaram na Síria e, curiosamente, não atacaram" o EI. Jean--Yves Le Drian, que falava na Assembleia Nacional, disse que as operações de ontem se destinaram "a reforçar" o regime de Assad, não a combaterem os islamitas. Fonte oficial declarou ao Le Figaro, sob anonimato, "não haver dúvidas de que foram os grupos de oposição os visados. O objetivo é o apoio ao regime de Bashar al-Assad, não é a luta contra" os islamitas.

Dos EUA, uma primeira fonte oficial não identificada explicou à Reuters haver razões para acreditar que os ataques não teriam tido como alvo o EI, justificando com o facto de as áreas bombardeadas não estarem sob controlo dos extremistas. "O objetivo parece ser o de permitir às forças [do regime] reconquistar os territórios" à oposição não extremista. O que permitiria consolidar a posição do regime ao longo de quase toda a região ocidental do país, que compreende as cidades mais populosas e onde Damasco tem conseguido manter um forte domínio. O secretário da Defesa, Ash Carter, acusou a Rússia de estar "a deitar gasolina no fogo" ao visar áreas onde, "provavelmente", não há forças do EI, e exigiu uma reunião de peritos americanos com russos para esclarecer as dúvidas sobre o ataque.

Pouco depois, falando no Conselho de Segurança da ONU, o secretário de Estado John Kerry declarou "ser extremamente grave" se as operações russas não visarem o EI. Kerry deixou um aviso revelador das tensões existentes entre Washington e Moscovo sobre o futuro da Síria, declarando que os islamitas "não podem ser derrotados enquanto Bashar al-Assad continuar como presidente da Síria". Kerry declarou ainda que os EUA e a coligação internacional vão prosseguir no espaço aéreo sírio, numa resposta indireta a Moscovo que pedira aos EUA para evitar aquele.

A intervenção da força aérea russa sucedeu logo após a aprovação, por unanimidade, no Parlamento de Moscovo da autorização ao presidente Vladimir Putin para desencadear estas operações. A autorização não abrange o envolvimento de efetivos no terreno. Segundo um comunicado do Ministério da Defesa russo, "os ataques visam alvos terrestres do EI no território" da Síria.

O envolvimento foi saudado pelo patriarca Cirilo I da Igreja Ortodoxa, classificando-o como ato de "defesa do povo sírio, atacado pelo mal".

O início das operações resultou, como é explicado num comunicado da Presidência russa, de um pedido feito por Assad. E qualquer "incremento do apoio militar da Rússia à Síria sucedeu, está a suceder e sucederá em resultado de um pedido direto do Estado sírio".

A mesma nota refere que a intervenção russa se baseia no direito internacional que rege as relações entre Estados e governos e tem como finalidade assegurar os "interesses das duas nações e garantir a sua integridade". Uma frase que é toda uma óbvia crítica à intervenção à coligação internacional, que atua de forma unilateral.

Uma fonte do regime de Damasco, citada pela Reuters, confirmou a nota do Kremlin, indicando que os aviões de combate russos estavam na Síria a pedido do presidente Assad.

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