Morte de ativista brasileira foi real ou metafórica?

Suicídio, em fevereiro, de Sabrina Bittencourt, a mulher que denunciou os casos de abuso sexual do médium João de Deus, causou choque. Dois meses depois crescem os rumores de encenação
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"Marielle me uno a ti. Eu fiz o que pude, até onde pude. Meu amor será eterno por todos vocês. Perdão por não aguentar, meus filhos", escreveu no dia 2 de fevereiro Sabrina Bittencourt, ativista brasileira de 38 anos, na sua conta de facebook. No dia seguinte, o filho e a ONG Vítimas Unidas, a cuja coordenação pertencia, anunciaram o seu suicídio.

Consternadas, dezenas de vítimas de abuso sexual, a causa a que Sabrina se dedicara nos últimos anos, entupiram os telefones das redações dos jornais, onde amigos da ativista, que se tornara fonte preciosa de informações, também estavam em choque, a pedir detalhes e enviar condolências. "Obrigada por dar voz e coragem a tantas mulheres", publicou a atriz Marina Ruy Barbosa, nas redes sociais. "A maior ativista do Brasil", descreveu Felipe Neto, um youtuber de sucesso. "Ela era tão solar que o suicídio não parece combinar com esse roteiro de vida", resumiu a amiga e atriz Ingrid Guimarães.

Nas horas seguintes, entretanto, enquanto o filho dizia que a mãe se suicidara no Líbano e seria enterrada debaixo de uma oliveira, o grupo Vítimas Unidas afirmava em nota que a morte ocorrera em Barcelona. E no perfil de facebook de Sabrina era publicada uma fotografia dela, na véspera do suicídio, em Angola.

A imprensa passou então a procurar mais informações, no consulado brasileiro de Barcelona e nas embaixadas do país sul-americano no Líbano e em Angola sobre registos de óbito, de velório, de enterro. E nada. A edição da segunda-feira seguinte ao suicídio do jornal O Globo já falava em "comoção" mas também em "informações desencontradas".

Na sequência, o site Hypeness citou amigos de Sabrina e falou pela primeira vez em "morte simbólica". Na revista Carta Capital, que dedicou a sua edição de dezembro de 2018 a Sabrina com o título de capa "ela desmascarou [o médium] João de Deus", a também ativista Maria do Carmo Lopes dizia não acreditar na tese do suicídio metafórico mas pedia para não ser mais contactada. "Para mim, ela partiu, nada mais!".

O filho escreveu nas redes sociais que "o corpo é dela, nenhum governo, youtuber, jornalista sensacionalista e gente corrupta de merda vai querer caçar o corpo dela".

Entrevistado pela revista Época, o espanhol Rafael Bueno, segundo marido de Sabrina e pai dos seus dois filhos mais novos, irmãos de Gabriel, corroborou a ideia: "Ninguém terá seu corpo como troféu. Nenhum homem desconhecido verá e tocará seu corpo sem seu consentimento. Nem morta deixará de ser uma mulher livre". Sobre um eventual suicídio para assumir uma nova identidade, Bueno afirmou que "seria ótimo que ela tivesse tido tempo para isso". "Ela estava tão envolvida, 24 horas por dia em salvar pessoas, que não teve tempo para cuidar de si mesma".

AMEAÇAS DE MORTE

Os que não acreditam no suicídio de Sabrina Bittencourt dividem-se em dois grupos. Um deles defende a tese que ela forjou o seu desaparecimento por estar a sofrer ameaças de morte. A jornalistas, a ativista enviara uma mensagem a denunciar perseguição horas antes do anúncio do suicídio. "Estou a ser perseguida por um homem chamado Paulo Pavesi. Um guia que trabalha na casa Dom Inácio de Loyola marcou vários matadores de João de Deus pedindo para me localizarem. Esse é o perfil dele. Ele é louco. Eu avisei que nesta semana fariam milhares de fake news a meu respeito".

João de Deus é um dos mais famosos médiuns brasileiros e mundiais, guru até da apresentadora norte-americana Oprah Winfrey, que publicou reportagens elogiosas sobre o seu trabalho espiritual em Abadiânia, pequena cidade do estado de Goiás. O médium foi denunciado por abuso sexual por dezenas de mulheres no final do ano passado, num trabalho coordenado, entre outras ativistas, por Sabrina Bittencourt. Por isso, ela se sentia ameaçada.

A esse propósito, a colunista da versão brasileira do jornal The Intercept Bruna de Lara lamentou que "o jornalismo tenha sido cegado por uma objetividade inabalável". E defendeu que, caso Sabrina tenha de facto forjado a sua morte, "qual o propósito de jornais ligarem para embaixadas, consulados e importunar o filho - um menino de 16 anos - sabendo que arriscar a vida de Sabrina (se ela ainda tiver uma) é o único resultado possível da busca pelo seu corpo?".

Em Portugal, onde reside, a fundadora da Vítimas Unidas, a ONG com que Sabrina colaborava, disse à revista Época que "se provarem que ela está viva, e que tudo isso é uma mentira, serei a primeira a sinceramente ter uma das maiores deceções da minha vida". Para Vanuzia Lopes, "as responsabilidades jurídicas e outras deste ato, se for provado ser fantasioso, são dela, exclusivamente".

MEGALOMANIA

O segundo grupo dos que não acreditam no suicídio, em vez da ênfase nas ameaças, destacam precisamente, as palavras "fantasia" e "mentira", Entre eles, Vinícius Thiessen, pai de Gabriel e primeiro marido de Sabrina, ouvido pelo jornal Metrópoles. "O que a Sabrina faz ou deixa de fazer não me diz respeito. O problema é o meu filho. A Sabrina está escondida no mundo, e eu encontro-me extremamente preocupado com o meu filho. Ele está sob o total poder da mãe. E eu não sei o que fazer".

Segundo o jornal, outros familiares e amigos contactados que pediram o anonimato referem-se a Sabrina como "megalomaníaca" e "mitómana", versão que os muitos defensores do trabalho dela contestam.

A reportagem recorda um caso de 2007, quando a ativista conseguiu pela primeira vez atrair a atenção dos media ao vender a festa do seu segundo casamento como a primeira boda ecologicamente correta, incluindo vestido feito de matérias recicláveis.

No ano seguinte, surgiu em programa da TV Globo como fundadora de 18 projetos sociais aos 26 anos.

Mais tarde, produziu um programa de culinária no youtube em que o seu filho, Gabriel, era o apresentador, aos nove anos.

Voltou ainda a atrair a atenção da Globo, e do mítico programa Fantástico, por ter sofrido repentina amnésia enquanto almoçava com a família. Segundo ela, esqueceu-se dos então últimos 11 anos da sua vida, não reconhecia o marido, nem os filhos mais novos, nem o facebook nem um smartphone. "Na minha mente, eu estava com 21 anos", dizia.

CONTRA OS GURUS

Foi em 2016 que Sabrina passou a dedicar-se às causas ligadas a vítimas de violência sexual, quando uma violação coletiva de uma jovem no Rio de Janeiro, filmada e divulgada nas redes sociais pelos abusadores, chocou o país. Através da hashtag #Eusousobrevivente contou que também ela sofreu abusos na adolescência na comunidade religiosa dos seus pais, a Igreja Mórmon, no Recife.

"Aos hipócritas que me foderam há 20 anos, um aviso: vocês também vão cair. Cansei de ver que neste tempo vocês não evoluíram e continuam com as mesmas práticas perversas, arruinando famílias. Eu já não sou a garotinha de 16 anos. E não vou poupar ninguém. Sei bem que essa mensagem vai chegar a vocês. E não é uma ameaça, é uma promessa. Por mim e por todas as garotas e mulheres que sofreram na mão de vocês", escreveu.

Mais tarde, depois do jornal Folha de S.Paulo noticiar supostos abusos cometidos pelo guru brasileiro Sri Prem Baba, passou a servir de confidente ​​​​​​online de mulheres que tivessem sido vítimas desse tipo de crime dentro de comunidades espirituais. Em poucos dias, recebeu mais de 100 relatos contra religiosos poderosos, entre os quais João de Deus. Foi então que jornalistas, segundo ela, passaram a procurá-la.

Denunciado o médium - preso desde 16 de dezembro - ganhou admiração e inimizades. Conta a jornalista do The Intercept que semanas antes da notícia da morte de Sabrina nunca havia visto ou ouvido "uma pessoa tão exausta". "Isolada em algum canto do mundo, ela contava, abatida, as denúncias que vinha recebendo; a sua dedicação em tempo integral ao acolhimento das vítimas; as ameaças incessantes contra ela e sua família; e a mudança constante para evitar ser localizada por quem a ameaçava. Nessas condições, o seu suicídio não deixa de ser uma espécie de assassinato".

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