Morricone, o maestro que mantém Hollywood à distância
"Quando me contratam para compor uma banda sonora, começo por ver o filme. A partir daí, é como se estivesse grávido: ocupo-me exclusivamente da 'criança' e não paro de pensar na música, até quando vou à mercearia." Esta explicação prévia ajuda a perceber a intensidade que Ennio Morricone - nascido em Lazio, Roma, faz hoje 90 anos - dedica ao seu trabalho, mesmo depois de acumular mais de cinco centenas de assinaturas musicais para longas-metragens, filmes de TV e documentários.
Acresce uma particularidade: não utiliza o piano ou qualquer outro instrumento para as suas composições - tudo continua a saltar diretamente da sua cabeça para as pautas. Nem sequer faz ensaios exploratórios com naipes de instrumentistas, não há work in progress que, no seu entender, seria um sinal exterior de "amadorismo". De alguma forma, este modus operandi repete-se desde 1961, ano em que Morricone ganhou direito à sua primeira banda sonora "oficial", no filme Il Federale, de Luciano Salce. Antes disso, desde o final do seu percurso académico, já o maestro compusera e arranjara música de filmes - mas os créditos não o contemplavam...
Foi a chamada, inicialmente reticente, de um antigo colega de escola que mudou a vida de Ennio Morricone, ao ser desafiado por Sergio Leone para se ocupar da música de Por Um Punhado de Dólares. O que nenhum dos dois sabia, nessa primeira colaboração, é que os nomes de ambos se tornariam praticamente indissociáveis: se Einsenstein é automaticamente associado a Prokofiev, se há reações idênticas entre Alfred Hitchcock e Bernard Herrmann ou entre Federico Fellini e Nino Rota, se mais recentemente Steven Spielberg "sugere" John Williams ou Tim Burton "pede" Danny Elfman, Leone e Morricone foram corresponsáveis por modelar uma fórmula estruturante que traçou aquilo que ficou conhecido como western spaghetti, designação rejeitada pelo compositor, que a considera "redutora". Muitos anos e vários filmes mais tarde, outro episódio deixaria marcas na parceria, quando o distribuidor norte-americano de Era Uma Vez na América se atrasou a entregar o processo que teria permitido à partitura de Morricone poder estar presente na corrida aos Óscares.
Os maiores prémios do cinema não suscitavam, até há algum tempo, boas sensações a Ennio Morricone, nomeado sem êxito por cinco vezes entre 1978 e 2000, com responsabilidades de compositor em filmes de Terrence Malick (Dias do Paraíso), Roland Joffé (A Missão), Brian de Palma (Os Intocáveis), Barry Levinson (Bugsy) e Giuseppe Tornatore (Malèna). De todas estas ocasiões em que a sua música ficou à porta da estatueta, o italiano só refilou uma vez: quando diante da sua notável partitura para A Missão, a Academia preferiu premiar À Volta da Meia-Noite, filme de Bertrand Tavernier sobre um músico norte-americano de jazz que visita Paris. A razão é simples: não se tratava, disse Morricone, de música original, mas de arranjos ("extraordinários, por sinal") de Herbie Hancock para diversos temas clássicos do género. Em 2007, Hollywood tentou emendar a mão, entregando ao veterano um Óscar honorário, de carreira. Ainda assim, menos saboroso do que aquele que, "em competição", recebeu em 2016, pela banda sonora de Os Oito Odiados, filme realizado pelo homem que aponta Morricone - que também ganhou por três vezes o Globo de Ouro e por seis vezes o BAFTA - como o seu compositor favorito: Quentin Tarantino.
Além dos seus compatriotas, de Bernardo Bertolucci a Mauro Bolognini e de Dario Argento a Sergio Sollima, colaborou com alguns dos nomes mais sonantes de Hollywood - fora os já citados, aconteceu com Roman Polanski, Mike Nichols, Don Siegel, Warren Beatty, Oliver Stone ou John Carpenter. Foram-lhe postas à disposição todas as "comodidades" se aceitasse mudar-se de vez para a zona de Los Angeles, desde um chorudo ordenado a uma mansão. Morricone continuou a viver em Roma e a privilegiar a Europa para as suas digressões orquestrais. Mais: teima em só conceder entrevistas desde que a língua seja o italiano. Noutra frente, mantém, desde outubro de 1956 - há 62 anos! -, o casamento com Maria Travia, que lhe deu quatro filhos.
Nos filmes, criou um estilo muito próprio, em que utiliza muitas vezes a voz feminina sem palavras, como se de mais um instrumento se tratasse, ou em que aposta em fazer sobressair um determinado som - já aconteceu com a harmónica ou a flauta de Pan, o trompete (o seu parceiro de eleição, até como executante, nos primeiros anos) ou o oboé. Mas os seus domínios estendem-se muito além da terra dos filmes: não é invulgar descobrir a sua assinatura em muitos temas do cancioneiro ligeiro italiano, tendo escrito propositadamente para figuras como Mina ou Zucchero. "Denunciado" como influência do mundo da música rock - dos Radiohead aos Muse -, compôs para Paul Anka, viu as suas melodias justificar um disco de homenagem do sublime violoncelista Yo-Yo Ma, é seu o tema que assinala, em todos os concertos, a subida ao palco do grupo Metallica.
Há, ainda, um caso particular e muito português: a sua ligação a Dulce Pontes, iniciada de forma pública com a gravação de A Brisa do Coração (1995), continuada com outro disco, Focus (2003), e prolongada até hoje com a presença da cantora em muitos dos concertos em que Ennio Morricone continua a aparecer também como diretor de orquestra. Há pouco mais de dois anos, Dulce continuava a considerar "um estímulo sempre renovado" cada uma das chamadas de Morricone, avaliando que, até então, a perda de algumas faculdades físicas em nada tinha prejudicado a energia e o brilho do maestro, "tão exigente como terno". Quanto à lucidez, estamos conversados: foi ele quem afirmou, de forma lapidar, que "um mau filme não pode ser salvo por uma boa banda sonora". Fala quem sabe.