Morreu Johnny Clegg, o cantor do hino anti-apartheid "Asimbonanga"

Cresceu com os sons e ritmos zulus e, numa África do Sul que vivia o apartheid racista, ousou misturar melodias ocidentais com estruturas musicais zulus. Valeu-lhe a censura e a prisão. Tinha 66 anos e não resistiu a um cancro.
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Num tempo em que poucos brancos ousavam levantar a voz contra o apartheid que segregava todos os outros por causa da cor de pele na África do Sul, um rapaz nascido em Inglaterra, filho de pai britânico e mãe do Zimbabwe (então Rodésia), encantou-se pelos sons e ritmos zulus e desafiou as leis racistas do seu país de adoção. Johnny Clegg, o cantor do êxito mundial Asimbonanga, um hino anti-apartheid, dedicado a Nelson Mandela, lançado em 1987, morreu aos 66 anos na terça-feira de cancro do pâncreas, que lhe tinha sido diagnosticado em 2015.

Conhecido por "zulu branco", por causa do ativismo cultural contra a política segregacionista de apartheid, Johnny Clegg recusou sempre qualquer superioridade de civilizações, entrelaçando os ritmos endiabrados zulus e guitarras, teclados e acordeões. "As pessoas ficavam intrigadas com a nossa música", disse em tempos, numa frase agora recuperada pelo jornal francês L'Observateur.

Clegg nasceu em 1953, em Bacup, próximo de Rochdale, Manchester. Com o divórcio dos pais, ainda criança, acompanhou a mãe quando esta regressou ao seu Zimbabwe natal. Esta cantora de jazz voltou a casar, desta vez com um jornalista sul-africano, e Johnny desembarcou aos 7 anos na África do Sul. Ainda viveu na Zâmbia, dos 9 aos 11 anos, regressando a Joanesburgo para se deixar imergir numa cultura diferente, também por influência do padrasto, repórter de crime. Aprendeu música com trabalhadores de bairros operários e não perdia uma oportunidade de entrar em competições de dança.

"Eu sentia-me como um imigrante", contou Clegg ao jornal americano New York Times em 1990. "Os trabalhadores migrantes eram eles próprios imigrantes, então tivemos um sentimento semelhante de marginalidade na cidade... E isso era algo com o qual eu podia relacionar-me emocionalmente."

Na biografia disponibilizada no seu site oficial, conta-se que Johnny estudou Antropologia na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, onde explorou a mistura de letras em inglês e melodias ocidentais com estruturas musicais zulus. Um produtor sul-africano, Hilton Rosenthal, entusiasmou-se com o projeto e "impulsionou-o com paixão": contrato Johnny e Sipho Mchunu (que era já o seu companheiro de composição e nos palcos) para a sua editora independente. Esta mistura não era lucrativa: por causa da censura racista, a rádio não passava música ou bandas mistas.

Clegg e a banda que formou com Sipho Mchunu, que se chamava Juluka, a palavra zulu para "suor", enfrentaram as leis segregacionistas, tocando em universidades, igrejas e pensões de trabalhadores. Por causa disso foram constantemente assediados pela polícia, com concertos proibidos e detenções. Em 1979 lançam o primeiro álbum, Universal Men, e dois anos depois é a vez de African Litany. Em 1982, a canção Scatterlings of Africa obtém algum sucesso na Europa e América do Norte, subindo nas tabelas de vendas na Inglaterra e França.

O clamor internacional contra o odioso regime da África do Sul era cada vez maior e, em 1987, Asimbonanga irrompe por todo o lado. A canção fala explicitamente de Nelson Mandela, então preso. "Nós não o vimos, nós não vimos Mandela, no lugar onde está, no lugar onde o mantêm", canta Clegg em zulu. E há outros três nomes referidos na canção: Steve Biko, Victoria Mxenge e Neil Aggett, todos ativistas mortos pelo regime racista.

Com o fim definitivo do apartheid, em 1994, é Clegg que diz que "foi como se tivéssemos nascido uma segunda vez". Mas essa nova vida foi dura: "A luta antes era mais simples. Nós vivíamos aqui num túnel, separados do resto do mundo, e definíamo-nos como 'contra', liderando uma batalha que escondia todas as outras", apontou mais tarde. "Hoje estamos a lidar com toda uma série de questões e conflitos relacionados com a pobreza, a construção de uma nação, a sida, a globalização."

Depois de diagnosticado o cancro em 2015, Clegg fez uma pausa na música, para regressar para uma "última viagem", o nome que deu à sua derradeira digressão, que terminou em outubro do ano passado, nas ilhas Maurícias. O funeral será privado e a família pediu que seja respeitada a intimidade neste momento, prometendo uma cerimónia pública de homenagem para mais tarde.

Numa declaração tornada pública pela família, esta terça-feira, lê-se que "Johnny deixa marcas profundas nos corações de todas as pessoas que se consideram africanas. Ele mostrou o que era assimilar e abraçar outras culturas sem perder a identidade".

O músico que passou por Portugal no final dos anos 1980, na Festa do Avante!, recordava de forma especial um concerto em 1997, na Alemanha, quando Nelson Mandela entrou em palco a dançar ao som de Asimbonanga. Johnny não sabia que o então presidente sul-africano estava na audiência. "Esse foi o maior momento para mim", recordou Clegg. "Foi um presente completo e surpreendente do universo."

No final da canção, depois de Mandela cumprimentar todos em palco, o músico perguntou-lhe se ele queria dizer alguma coisa ao público. "É a música e a dança que me deixa em paz com o mundo. E em paz comigo mesmo", disse Mandela, que logo objetou que não via muito movimento na audiência. E pediu que todos se levantassem e dançassem. Clegg voltou a cantar Asimbonanga enquanto Mandela dançava e sorria a seu lado.

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