Francisco Nicholson "inovou em todo o lado"
"Fiquei a olhar feito parvo..." António Calvário tomava o pequeno-almoço num café perto de sua casa. "Estava a ver um programa de televisão, e de repente começo a ver em rodapé. É terrível, não se está à espera." Era a morte do seu amigo Francisco Nicholson o que passava em rodapé. Tinha 77 anos, foi ator, encenador, dramaturgo, autor da primeira telenovela portuguesa, Vila Faia, e do pioneiro programa de comédia Riso a ritmo, que assinou com Armando Cortez.
[artigo:5122093]
E é o autor da letra de Oração, a primeira canção portuguesa no Festival da Canção. Foi Calvário quem a cantou em 1964, um ano depois de conhecer Nicholson no teatro de revista. "Foi no [espetáculo] Chapéu Alto, no teatro ABC. Fizemos imensas digressões, corríamos o país. Íamos para tudo o que era paródia depois do trabalho."
Paródia, Oração, e mais de 50 anos de carreira. Francisco António de Vasconcelos Nicholson - tinha ascendência inglesa do lado paterno -, que nasceu em Lisboa a 26 de junho de 1938, morreu no hospital Curry Cabral, onde estava hospitalizado desde quinta-feira devido a complicações decorrentes de um transplante hepático, a que foi submetido há alguns anos.
[artigo:5122231]
Olhar para as imagens da vida dele é ver as suas fotografias chamadas de estilo, dos anos 60, aquelas que se autografavam - o seu único romance é Os Mortos não dão Autógrafos (2014) - e entregavam em mão; é vê-lo ao lado de um Nicolau Breyner de bigode e de um Rui Mendes franzino numa reunião de atores, dias após o 25 de abril, no Parque Mayer; é vê-lo a ele e a Armando Cortez de chapéu de coco; ele no palco com um burro; ele e a filha, também atriz, Sofia Nicholson; ele e a segunda mulher, a bailarina Magda Cardoso.
António Calvário recorda o "bom companheirismo" daquele homem que diz nunca ter visto "triste". Um dia, "até inventou uma história de vender água do meu banho. Frasquinhos com o rótulo: banho do António Calvário. Não era mesmo. E era um preço simbólico e as meninas levavam. Coisas só do Francisco Nicholson..."
Rui Mendes conheceu-o bem antes. Eram miúdos de "13 anos" na mesma turma do Liceu Camões, em Lisboa. Foi aí que começaram a fazer teatro, com o encenador António Manuel Couto Viana. Depois de Nicholson regressar da Marinha e de Paris, onde passou pela Academia Charles Dullin, do Théatre Nacional Populaire, Rui Mendes voltou a trabalhar com ele na Companhia de Teatro Infantil Gerifalto.
"O melhor autor de telenovelas"
Em tudo quanto Nicholson fez, Rui Mendes foi vendo "sempre o mesmo Francisco, a evoluir nas várias facetas". "Ele inovou no teatro, na revista, na telenovela, na televisão. Inovar é deixar de fazer o que os outros faziam e fazer coisas novas, mais avançadas. Foi o que ele fez em todo o lado. Considero que ele é o melhor autor de telenovelas que já existiu neste país." Em revista, trabalhou em teatros como o ABC ou o Villaret, quer como ator, quer como encenador. Fundou o Teatro Adoque logo depois do 25 de abril.
Os valores que o guiavam então poderão estar entre o que levou o Presidente da República a dizer que Nicholson deixa "a saudade da intervenção política do lutador pela democracia", como a que que deixa enquanto "artista" e "amigo", referiu Marcelo Rebelo de Sousa numa mensagem de vídeo. Além de Vila Faia, a primeira telenovela portuguesa, escreveu outras, como Os Lobos. "Mesmo já doente ele nunca estava mal disposto. Estava sempre bem disposto, com um sentido de humor extraordinário", diz Rui Mendes.
Também Herman José recordou à Lusa um "grande autor". E um "sobrevivente": "Como é que um duplo transplantado de fígado consegue viver até aos 77 anos? É uma coisa histórica". O funeral de Francisco Nicholson realiza-se amanhã, a partir das 10.00, na Basílica da Estrela.