Morreu a investigadora, a professora, a combatente da Sida

A lista de adjetivos é pequena para descrever Odette Ferreira, diz quem com ela se cruzou. E que destaca sobretudo o seu papel na luta contra a sida e que nunca desistiu. Até à morte.
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Pioneira da investigação do VIH/Sida, Odette Ferreira morreu nesta tarde de domingo, às 15:30, no Hospital São Francisco Xavier, uma das três unidades do Centro Hospitalar Lisboa Ocidental, onde está integrado o Hospital Egas Moniz. E em cujas equipas de investigação trabalhou e identificou pela primeira vez o vírus VIH tipo 2, em coordenação com o Instituto Pasteur.

Licenciada em Farmácia, estagiou no Instituto após concluir o bacharelato, estabelecendo com os franceses uma longa e proveitosa colaboração.

Odette Ferreira, a nível laboratorial, e José Luís Champalimaud, clínico, levaram a amostra da nova variante do VIH a Paris, que confirmaram a descoberta. Tinha sido colhida por Kamal Mansinho em doentes oriundos da Guiné-BIssau. Fez em setembro 33 anos.

A cientista continuou a investigar, presidiu à Comissão Nacional de Luta Contra a Sida, entre 1992 e 2000, lutou contra o estigma para com os doentes com sida, nunca deixou de se envolver nesse combate. "Era uma grande lutadora pela causa, ainda hoje que estava mais envelhecida. Foi sempre uma pessoa muito participativa e vai deixar saudades a muita gente. Mereceu todas as homenagens que lhe fizeram. Teve um grande contributo na luta contra a sida e estava pronta em estar presente sempre que a convidavam para qualquer iniciativa, fazia questão de aparecer", lembra Rui Sarmento e Castro, diretor do Serviço de Doenças Infecciosas do Centro Hospitalar do Porto.

Aconteceu recentemente, quando programavam o congresso para assinalar o Dia Mundial da Luta Contra a Sida, 1 de dezembro. Iam enviar o convite à investigadora quando souberam que tinha sido internada na sequência de um AVC.

Maria de Belém acompanhou-a nos últimos momentos, recorda as atividades e amizade que desenvolveram na área da saúde, nomeadamente quando foi ministra no XIII governo, entre 1995 e 1999. "Teve uma vida muito cheia, uma vida plena, uma infância muito rica, que criou nela o espírito e gosto pelo estudo. A faculdade permitiu-lhe desenvolver toda a atividade científica, foi muito bem sucedida"

Recorda a descoberta do vírus do VIH-2, os anos da Comissão, "onde trabalhava 24/24 se fosse preciso e sem receber", também do lançamento do programa de substituição de seringas - "Diz não a uma seringa em segunda mão", em 1993. A sua importância para o combate à propagação do HIV e da hepatite foi reconhecido pela Comissão Europeia. Maria de Belém sublinha que Odette Ferreira foi primeiro homenageada pela embaixada francesa do que pelo governo português.

"Não era uma investigadora de laboratório, era uma pessoa que arregaçava as mangas e fazia de tudo. Tinha uma tarefa, sabia como a fazer e levava até ao fim. E tinha à volta dela gente nova e dedicada que sabia motivar. Grande investigadora e uma professora que os alunos adoravam, trabalhou com uma dedicação tão grande que conseguiu cativar toda a gente", enaltece a ex-ministra.

Não foi professora de Isabel Aldir mas é assim que a ela se refere a diretora do Programa Nacional para a Infeção VIH, Sida e Tuberculose. "Em Portugal, falar da luta contra a sida sem falar da professora Odette Ferreira é absolutamente impossível. Teve um papel fundamental que ainda hoje se mantém. Iniciou o programa de troca de seringas e foi sua coordenadora durante muitos anos, quando o acesso às ferramentas não estava tão facilitado como agora. O estigma da doença era muito maior e a professora lutou todos os dias contra esse estigma, não só na Comissão, também na investigação e ensino. Manteve até ao final da vida o interesse por estas matérias. Era uma pessoa com uma grandeza muito grande e que sempre acompanhou as gerações mais novas".

As pessoas com quem o DN falou destacam também o contacto com as associações, nomeadamente de doentes com VIH, a criação de comissões e de serviços de apoio domiciliário. O empenho em várias campanhas, nacionais e internacionais, como para angariar fundos para projetos em África. Maria de Belém recorda, ainda, o seu envolvimento mais recente com a Associação Dignitude, a cujo Conselho Geral preside,

Odette Ferreira recebeu o Prémio Nacional de Saúde, em 1993, que elege quem tenha contribuído para a obtenção de ganhos em saúde no âmbito do Serviço Nacional de Saúde. O ano passado, a Faculdade de Farmácia, Universidade de Lisboa, que já tinha instituído o Prémio Odette Ferreira, para a área da Saúde Pública, promoveu-lhe uma homenagem. No dia em que deram o seu nome ao auditório que ajudou a construir e foi lançado a biografia: "Uma luta, uma vida".

Em fevereiro, a cientista recebeu do Presidente da República a grã-cruz da Ordem da Instrução Pública.

O corpo de Odette Ferreira irá para a Igreja do Campo Grande, em Lisboa, e as cerimónias fúnebres serão celebradas pelo padre Feytor Pinto, desconhecendo-se, ainda, quando terão lugar.

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