Morrer a trabalhar? Há um nome para isso: Karoshi*

*Ainda por cima, parece que um dia de trabalho a menos por semana é bom para o ambiente? Então do que estamos à espera para mudar o paradigma? Em primeiro lugar, melhores elites. Mas também sermos mais exigentes connosco próprios. Em toda a linha.
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Os números são de 2016, mas são os mais recentes que a Organização Mundial de Saúde possui, revelados em meados deste mês: 745 mil pessoas morreram no mundo nesse ano por demasiadas longas horas de trabalho seguidas, que originaram AVC e doenças coronárias. Um valor que representa uma subida de 20% face aos dados anteriores, de 2000.

Note-se que estes dados são pré-pandemia e pré-teletrabalho. Não contabilizam ainda o consequente esbater da fronteira entre a vida pessoal e laboral que esta realidade veio trazer, pelo que não haverá razões para crer que a situação ficará melhor.

Ainda segundo o relatório, trabalhar 55 ou mais horas por semana significa um aumento de 35% no risco de AVC e de 17% de morte por enfarte, quando comparado com um horário de trabalho de 35 ou 40 horas por semana.

Será a primeira vez que o alerta é dado a um nível global. Para os japoneses, como escreve esta sexta-feira a Wired britânica, nada disto é novidade. Há décadas que eles sabem bem o que é, literalmente, matarem-se a trabalhar. Tanto que, há 30 anos, o sociólogo Junko Kitanaka, da Universidade Keio, estudou o caso e o apresentou internacionalmente como estudo académico.

Aliás, os japoneses até criaram uma palavra para definir o ato de morrer por excesso de trabalho: karoshi.

Só que, se nos anos 90 karoshi era essencialmente um fenómeno japonês (ou de alguns países asiáticos) -- isto é, a atitude de a pessoa dedicar-se de tal forma à profissão que acaba por não ter vida pessoal e por morrer de trabalho --, a sociedade globalizada e "sempre ligada" tem feito por trazer essa realidade até quase todo o mundo industrializado.

Como combater isto numa sociedade cada vez mais exigente e competitiva, em que as 24 horas do dia parecem não chegar para todas as solicitações?

Obviamente não há uma resposta simples para o problema. E as que se vão obtendo dependem de vários fatores, como a orientação política de quem as dá ou a sua experiência pessoal.

Mas tentemos ser um pouco mais construtivos do que tudo isto.

Antes de mais, não existem fórmulas únicas. Todas as relações laborais são complexas, porque são relações humanas. Isto pode parecer um lugar-comum, mas convém manter sempre em mente.

As soluções aplicadas "de cima para baixo" -- ou seja, por força da lei -- devem ser criadas de forma a mitigar situações de abuso de poder entre as partes mais fortes e mais fracas (aquilo que em inglês se diz "level the playing field"). Mas não se pode cair no extremo de interferir em demasia na vida quotidiana das organizações, seja em benefício de um lado (tornando quase impossível despedir, por exemplo) ou de outro (permitindo que haja "falsos recibos verdes" em barda sem fiscalizar, mais uma vez por exemplo).

O papel do Estado aqui é fundamental. Mas para funcionar, terá de ser um Estado ágil, rápido a atuar e, acima de tudo, a saber ler a realidade contextual da economia. Leis laborais estáticas e sistemas de justiça lentos que fazem com que ninguém -- nem empresários, nem trabalhadores -- confie que a eles possa recorrer para dirimir problemas (que é tudo o que temos atualmente, diga-se, e sem nitidamente qualquer vontade política de mudar) são o caminho para o desastre.

Ao contrário do que aparentemente pensa o atual primeiro-ministro, que este fim de semana demonstrou querer uma lei de trabalho ainda menos flexível, não é possível regular tudo até à exaustão. Não. Não é possível fazer leis e leizinhas para dizer às pessoas como se devem comportar, quando devem inspirar e expirar. Isto para o bem e para o mal. A lei não chega -- nunca chegará -- nem para evitar aquelas pessoas que fazem por trabalhar o menos possível, nem o karoshi. Porque não se pode (felizmente) pôr um fiscal da ACT atrás de cada trabalhador/funcionário/colaborador/whatever.

Dentro da organização (empresa, grupo, etc.) cada situação deve ser tratada como isso mesmo: uma situação individual.

Não existem duas pessoas iguais. A relação de trabalho com cada uma delas tem necessariamente de refletir isso mesmo.

Por isso, nas empresas de maior dimensão, é essencial uma área de Recursos Humanos eficiente e com meios para agir, quando necessário. Mesmo em organizações mais pequenas, em que o "patrão" tem de fazer as vezes de diretor de RH, é este quem tem de dirimir os conflitos -- e se não tiver capacidade para isso pode bem-estar a pôr o seu próprio futuro em cheque.

O que nos leva a outro dos maiores problemas do país nesta área: o valor e preparação das nossas elites.

O estudo promovido pela Faculdade de Economia da Universidade do Porto e pela Universidade de Saint Gallen que noticiámos coloca-nos na 14.ª posição da UE a 25, atrás de Estónia, República Checa, Lituânia e Eslovénia -- países potenciais concorrentes.

"Fraca competitividade externa, elevado nível de endividamento, estrutura de especialização em atividades vocacionadas para mercado interno e péssima qualidade institucional" estão entre as razões apontadas para este resultado.

Acrescento mais algumas, a primeira de forma aparentemente anedótica, mas verdadeira:

Um pequeno empresário britânico (de uma agência de comunicação) radicado em Portugal, já há muitos anos, entrou numa grande empresa -- privada com participação pública -- para uma reunião de preparação de uma nova campanha.

Ao ser conduzido à sala de reuniões passou por várias portas de gabinetes onde constavam os nomes dos ocupantes, todos com plaquinhas designando "dr. isto"; "dr. aquilo", "dr. aqueloutro"...

O pequeno empresário, no seu bom humor britânico, só comenta: "Não sabia que tinha vindo a um consultório médico"...

Possivelmente não existe sociedade mais hierarquizada do que a japonesa. Mas ao mesmo tempo existe elevador social no Japão, com as empresas a incentivarem a iniciativa pessoal.

(Quando a Sony quis criar o Walkman, por exemplo, abriu um concurso interno para as melhores ideias...)

Em Portugal, conseguimos o pior dos dois mundos: fazemos uma estratificação social baseada no cargo ocupado ou nas habilitações académicas -- com os "senhores doutores" e "senhores engenheiros" para aqui e para ali --, mas ao mesmo tempo não apenas as pessoas são mantidas durante demasiado tempo nos cargos, como os objetivos de negócio muitas vezes são definidos de forma suficientemente nebulosa para permitir muita margem de "interpretação", de modo que nem os funcionários sabem muito bem quais as metas a atingir, nem a quem se devem assacar responsabilidades, quando necessário. Além disso, é extremamente raro haver rápidas promoções diretas baseadas na iniciativa pessoal de quem vem de baixo.

O que é naturalmente uma falta de incentivo enorme para quem trabalha. Motivar equipas faz parte das funções de quem chefia, pelo que cabe também a quem ocupa estes lugares saber tirar o melhor dos seus "subalternos". Se não o consegue fazer, o melhor é ir plantar batatas...

Ainda por cima, ao que parece, uma semana de quatro dias de trabalho significa uma redução gigantesca nas emissões de CO2. Pelo menos é o que resulta de um estudo realizado agora no Reino Unido.

Ou seja, se as empresas -- ou melhor, se as pessoas nas empresas... Vamos lá de uma vez por todas pôr os pontos nos ii: as empresas são as pessoas. Se as pessoas se organizassem de forma a que conseguissem fazer o que é preciso para que os projetos fossem rentáveis e bem-sucedidos em menos tempo, o planeta agradecia, a saúde era melhor e andávamos todos muito mais bem-dispostos.

O que era preciso para que isto funcionasse? Um (bom) bocado menos de interferência do governo, mais inteligência e boa vontade das pessoas e transparência na comunicação.

Mas, claro, estou a sonhar. Afinal, estamos a falar de pessoas...

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