Sonhos esquisitos, lapsos temporais, memórias enigmáticas. Nada disto bate certo com a vida desenxabida de um homem inglês chamado Steven Grant, funcionário numa loja de souvenirs que estuda mitologia egípcia nas horas vagas. Talvez nunca tenhamos visto Oscar Isaac assim, alegremente atrapalhado e de sotaque britânico, na pele de uma personagem à beira de um ataque de nervos e da descoberta que lhe vai mudar a vida: afinal, toda aquela turbulência da mente está relacionada com o facto de o seu corpo ser compartilhado com Marc Spector, um ex-mercenário de acento americano (mais ao jeito de Isaac), semblante carregado e segredos que vão até... ao Egipto. Por outras palavras, Marc é o avatar de Khonshu, o deus egípcio da Lua e da Vingança. Tido e achado no meio de uma intriga que nada tinha que ver com ele, o pobre Steven vai ter de aceitar e adaptar-se à realidade do seu Transtorno Dissociativo de Identidade, por muitos trambolhões que seja preciso dar pelo caminho..Moon Knight: Cavaleiro da Lua, a nova série da Marvel com estreia exclusiva no Disney+, centra-se neste super-herói cuja primeira aparição remonta a 1975, na banda desenhada Werewolf by Night, e nunca tinha sido levado ao ecrã em versão live-action. Para o fazer, o estúdio convidou o realizar egípcio Mohamed Diab (Clash) a emprestar a sua visão ao projeto, alguém que vem do cinema independente para uma grande produção mas não se sente minimamente intimidado: "Dentro do enquadramento, é tudo igual. Como realizador, em cada plano tento captar o raio de luz dentro da garrafa. Aqui a escala é maior, há mais sequências de ação, mas no fundo é o mesmo. Se consegues realizar drama, consegues realizar qualquer coisa. Se formos a ver, muitos dos melhores realizadores de Hollywood dos últimos 20 anos em cinema de ação começaram com pequenos filmes; exemplo do Christopher Nolan, que se estreou com filmes independentes e de repente já estava a fazer o Batman [2005]! Pense-se também no Denis Villeneuve... há vários. Portanto, o essencial é tentar deixar a nossa marca, filmar uma cena de ação de uma maneira só nossa", disse Diab em resposta à pergunta do DN numa roundtable virtual..Dos seis episódios de Moon Knight, quatro são assinados por ele, ficando os dois restantes ao cuidado de Justin Benson e Aaron Moorhead, a dupla americana que nos deu uma boa malha de ficção científica e terror lovecraftiano em O Interminável (2017) - também estes habituados a baixos orçamentos e, de repente, a depararem-se com outro patamar de produção. Em todo o caso, Mohamed Diab é o homem com a afinidade natural ao projeto: "Definitivamente, um dos primeiros motivos que me ligou à história foi esta origem egípcia - e passa-se mesmo no Egipto atual. Portanto, isso era muito importante para mim, mas, honestamente, o que me atraiu não tem só que ver com o facto de eu ser egípcio, é a história em si, o drama. Veja-se, o meu último filme nem sequer é egípcio, é palestiniano, e o que me atraiu para ele foi a história. Isto para dizer que não me interessa os grandes orçamentos ou a língua, o que importa é se acredito naquela história, se acredito que sou capaz de a contar melhor do que qualquer outro, e se me identifico com a personagem principal. Neste caso estamos a falar de um extremo, de alguém com Transtorno Dissociativo de Identidade, mas todos nós temos uma persona e precisamos de aprender a viver como apenas uma pessoa, por isso, num certo nível, identifiquei-me com esta ideia." Para além disso, "senti que havia espaço para fazer algo mais negro e, sobretudo, senti que era um projeto diferente da linha comum do universo Marvel.".Nesta história, como em qualquer história de quadradinhos da Marvel, há uma figura antagonista de peso, Arthur Harrow, interpretada por Ethan Hawke com uma suavidade requintada, que o ator tenta desviar da noção básica de vilão. De resto, é facilmente a personagem mais sedutora, em parte pela forma como Hawke lhe dá uma aura de líder de culto com a sua própria perspetiva do mundo, que à partida será mais idealista do que maléfica. Nele Diab reconhece a atração do elemento humano: "O bem e o mal por vezes é um terreno nebuloso. Nós vivemos numa zona cinzenta - o preto e branco não existe. Por isso é tão difícil perceber quem é mau ou não. O melhor vilão que se pode ter é aquele que pensa e acredita que é uma boa pessoa. É por essa razão que acho que os mais bem-sucedidos vilões da Marvel são o Killmonger [Black Panther] e o Thanos [Vingadores: Endgame], personagens que as pessoas percebem que podem apelar ao ser humano comum. E penso que o caso de Arthur Harrow é muito semelhante. As coisas que ele diz, na verdade, fazem sentido! Agora, é claro que é uma questão filosófica.".Ser realizador de Moon Knight: Cavaleiro da Lua implica uma certa atenção aos fãs, mas não anula a licença criativa. "Há duas coisas: tu queres ser fiel aos fãs e à banda desenhada, mas ao mesmo tempo tens liberdade para trazer para este universo o que quiseres. É muito importante satisfazer os fãs, aqueles que seguem a banda desenhada há 40 anos. E a melhor coisa que esta última nos dá é o facto de haver muitas interações na história. Gosto que nos tenhamos mantido fiéis a Lemire [Jeff Lemire, um dos autores mais recentes da BD] - é a nossa principal fonte de inspiração - mas a liberdade permitiu-nos inventar a ideologia do vilão, funcionando no sentido de contar uma história melhor", diz Mohamed Diab com satisfação, sublinhando que o segredo da diferença está na premissa: "Imagina-te como uma pessoa normal que descobre que tem outra identidade e que essa identidade é um super-herói!".Entre o super-herói de Oscar Isaac e a némesis personificada por Ethan Hawks, há poucas dúvidas de que o último rouba as cenas. Mas no elenco encontramos também uma espécie de heroína interpretada pela egípcia-palestiniana May Calamawy e, num único episódio, o francês Gaspard Ulliel, naquele que foi um dos seus derradeiros papéis. O ator morreu em janeiro, aos 37 anos, vítima de um acidente de esqui..dnot@dn.pt