Monumentos soviéticos, um dano colateral da invasão russa à Ucrânia
Preocupados com o abastecimento energético e divididos, para já, quanto a uma possível proibição ou restrição de entrada de russos no espaço comum, alguns países com um passado de ocupação ou dominação russa começaram a remover ou destruir monumentos e memoriais de evocação da vitória do Exército Vermelho sobre as tropas nazis. Uma iniciativa que deixa os dirigentes russos enfurecidos.
A Letónia desmantelou na quinta-feira um monumento da era soviética na capital, Riga, dando expressão prática à lei aprovada recentemente e que dá até meados de novembro para retirar outros 70. Construído em 1985, o "monumento aos libertadores da Letónia soviética e de Riga dos invasores fascistas alemães" tinha em redor de um obelisco de 80 metros de altura estátuas de soldados e de uma mulher.
A comunidade de descendência russa, cerca de um quarto da população, havia protestado contra a remoção do monumento, local de romaria em cada 9 de maio, dia da comemoração da vitória sobre a Alemanha nazi em 1945. A questão é que a maioria dos letões, tal como os cidadãos dos outros Estados bálticos ou da esfera do Pacto de Varsóvia, veem a data como o início da ocupação e repressão soviéticas (no caso dos países bálticos aconteceu em 1940 e hoje são dos membro da UE e da NATO que mais têm demonstrado apoio a Kiev).
DestaquedestaqueO movimento contra o património soviético não é exclusivo dos estados bálticos. Após a invasão de 24 de fevereiro registaram-se atos de vandalismo na Polónia, República Checa, Eslováquia ou Bulgária.
Para a primeira-ministra da Estónia, a invasão russa da Ucrânia abriu "feridas na sociedade que estes monumentos comunistas fazem recordar". Como tal, Kaja Kallas anunciou há dias que "os monumentos soviéticos devem ser retirados dos espaços públicos e o mais rapidamente possível".
Ao monumento removido na vizinha Letónia um grupo de ativistas já tentara dinamitá-lo em 1997, mas os explosivos detonaram antes de tempo, pelo que acabaram por matar duas pessoas. Na Estónia, a remoção de um monumento de um soldado do Exército Vermelho em Taline desencadeou dias de tumultos, tendo resultado num morto, largas dezenas de feridos e centenas de detidos, além do posterior ciberataque de que o país foi vítima.
Há dias, novo ataque cibernético foi registado, só que desta vez, segundo as autoridades, os hackers russos do grupo Killnet falharam graças às capacidades de cibersegurança que o país desenvolveu, ou não tivesse a funcionar um centro de excelência de ciberdefesa da NATO. A causa da retaliação: o desmantelamento de um monumento com um tanque T-34 da era soviética em Narva, uma cidade de maioria russófona. O governo indicou que há mais seis monumentos para tirar daquela localidade, que tem o nome do rio que a separa da Rússia, numa lista nacional que pode chegar às 200 peças.
"Ninguém quer ver o nosso vizinho militante e hostil fomentar tensões na nossa casa. Não vamos dar à Rússia a oportunidade de usar o passado para perturbar a paz na Estónia", declarou Kallas, justificando a decisão com a necessidade de proteger a ordem pública e impedir a utilização dos espaços pela Rússia "para fomentar a desinformação e alimentar as tensões", segundo comunicado do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Foi também através do ministério homólogo que Moscovo reagiu. "A orgia neonazi continua a ganhar força nos países bálticos no que diz respeito à preservação do património histórico soviético", escreveu o porta-voz, Ivan Nachaev. "Consideramos tais ações como blasfémias que desonram a memória dos heróis caídos, numa tentativa de ajustar contas históricas com a Rússia."
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Na Lituânia, que registava antes da guerra 158 memoriais de soldados soviéticos junto das suas campas, o início da invasão foi o catalisador para a retirada de dezenas da lista de património a proteger, tendo alguns sido entretanto alvo de remoção. As autoridades dizem, contudo, que as placas permanecerão.
O movimento contra o património soviético não é exclusivo dos Estados bálticos. Após a invasão de 24 de fevereiro registaram-se atos de vandalismo na Polónia, República Checa, Eslováquia ou Bulgária.
No país que acolheu mais refugiados ucranianos, o movimento de acabar com a memória soviética já se tinha iniciado, tendo ganho novo impulso. Apesar de a Polónia não ter sido incorporada na URSS, foi vítima de invasão, tal como da Alemanha nazi. E o pacto Molotov-Ribbentrop é visto nos países de Leste como a prova de que a responsabilidade pela Segunda Guerra Mundial se reparte entre nazis e soviéticos.
Não é de estranhar que uma escultura em honra do Exército Vermelho, em Brzeg, no Sudoeste polaco, seja o 24.º monumento do género a desaparecer desde março. Só que, ao contrário, por exemplo, da Estónia, que recolhe as construções ou os tanques, na Polónia optou-se pela demolição.
Em declarações à Associated Press, o porta-voz do Instituto da Memória Nacional disse que foram identificados 60 e que "é impossível manter tais monumentos na esfera pública", de forma a materializar legislação aprovada em 2015. Dando argumentos a Moscovo, que vê neste movimento uma vingança neonazi, no ano passado o referido instituto esteve envolvido num escândalo ao admitir como diretor um historiador com simpatias fascistas (acabou demitido ao fim de uma dúzia de dias).
Prova de que a relação com a memória, património, história recente e relações diplomáticas é um caldo potencialmente indigesto, em 2020 os checos acabaram com décadas de discussões e retiraram do centro de Praga a estátua do general Ivan Konev. Afinal, o homem que liderou a campanha de libertação de Praga foi o mesmo que reprimiu a revolta húngara de 1956 ou que acabou com a Primavera de Praga, em 1968.
Na capital búlgara, o conjunto escultórico em honra do exército soviético, inaugurado em 1954, também é alvo de acesas discussões e de recorrentes intervenções artísticas. O autarca de Sófia chegou a anunciar a remoção do monumento, mas não há certezas sobre o seu destino.
cesar.avo@dn.pt