Mistério à beira do Mar Cáspio

A arte dramática de Asghar Farhadi para descobrir no catálogo Filmin: <em>À Procura de Elly</em> é um inédito nas salas portuguesas e um dos exemplos brilhantes da veia universal deste cineasta iraniano.
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O cinema como fascinante processo de revelação. Verdade esculpida. É esta a proposta clara de À Procura de Elly (2009), filme que condensa na sua tessitura a beleza do horizonte marítimo e a agonia de um desaparecimento explorado com mão de mestre - essa de Asghar Farhadi, nome forte da atual cinematografia iraniana. Sem ter passado pelas nossas salas, é um dos importantes títulos do cineasta e está disponível na plataforma de streaming Filmin.

A Elly do título, nome tão curto quanto aquilo que se sabe dela, é uma educadora de infância convidada por Sepideh, a mãe de uma das suas alunas, para uma saída de fim-de-semana ao Mar Cáspio. O grupo que vai integrar é composto por alguns casais, três crianças e um homem chamado Ahmad, que acaba de chegar da Alemanha, divorciado. Sepideh (a internacional Golshifteh Farahani) está empenhada em fazer o papel da casamenteira e tenta aproximar Elly e Ahmad de todas as maneiras, numa série de situações nada subtis e que começam a deixar a tímida professora desconfortável... Instalados numa casa à beira-mar, partilham toda a logística da limpeza, refeições e até jogos de família. Ao segundo dia, Elly diz que tem de se ir embora, mas Sepideh não faz caso. O facto é que ao fim de poucos minutos deixaremos de ver o seu rosto dócil.

O modo como Farhadi filma a sequência dessa última imagem de Elly é fabuloso: o seu corpo move-se, numa genuína expressão de liberdade, ao sabor do vento que puxa um papagaio de papel. E mais nada. Depois disso, a alegria e galhofa daquele fim-de-semana dão lugar a uma nuvem escura e devastadoras interrogações. O que aconteceu a Elly? Terá ido embora sem se despedir? E acima de tudo, quem era Elly? A consciência da falta de identidade desta personagem serve de motor para uma dinâmica de incertezas e dúvidas que se expõem numa mise-en-scène de cortar a respiração. Cada um dos membros do grupo tem um lugar definido neste caos momentâneo, e Farhadi desenha as linhas dramáticas com impulsos que devem mais à cadência teatral do que ao mecanismo do thriller (embora a tendência seja colocá-lo nessa categoria).

Elly passa então a ser um enigma por desmontar e, à medida que as camadas de enganos e mentiras se vão desgastando, um olhar cultural de fundo transparece no retrato realista. A Asghar Farhadi interessa o apuramento de um quadro humano através das suas ambiguidades, e não soluções práticas para uma charada. Daí que, dentro do que é o semblante iraniano, se sinta a força universal deste e de outros filmes seus - Uma Separação (2011), O Passado (2013) ou O Vendedor (2016). No caso particular de À Procura de Elly, a forma como o cineasta encerra a angústia numa paisagem à beira-mar, sem psicologia gratuita, faz desta uma das meditações mais preciosas da sua obra.

Quem viu Todos Sabem, o trabalho mais recente (e menor) do realizador, uma saga familiar espanhola com Penélope Cruz e Javier Bardem nos principais papéis, reconhecerá de imediato o dispositivo base do desaparecimento de uma personagem, que já estava, como se vê, neste filme de 2009. Eis a questão: se em Todos Sabem a narrativa ganha contornos de matéria telenovelesca, em À Procura de Elly ela é, por si só, um tremendo estudo sobre as relações humanas em face de um mistério com contornos de tragédia. Junte-se a isso uma verdadeira alma iraniana.

**** Muito bom

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