Milhões de migrantes em cena no Teatro Joaquim Benite
Ele próprio migrou. Deixou a Roménia em 1987, fugiu da ditadura, arriscou a vida para "saborear a liberdade". Chegou a França e descobriu o capitalismo e a democracia. A profissão detonou-lhe o caminho enquanto espectador. Como jornalista da Radio France Internacionale , contactou de perto com a Selva de Calais e com os campos de refugiados das ilhas gregas, lado a lado com o desfecho tolhido por arame farpado. Uma história que já foi sua e que continua a ser. E foi por isso que Matéi Visniec quis usar todo o material jornalístico para tentar compreender as "motivações profundas de uma grande transformação humana, cultural e geopolítica". Trazê-lo para palco. O material, as histórias, as entrevistas, as reportagens, a "revolução da partilha", como assim lhe chama.
Matéi Visniec é o autor do texto, o jornalista-escritor e o migrante determinado a falar do que viu e ouviu numa hora e meia de partilha nas tábuas do teatro. A sua mais recente peça, Migrantes, em estreia absoluta em Portugal, lança o debate sobre um tema que urge solução. "Escrevo teatro para compreender o homem e as contradições do ser humano e da alma humana", diz Matéi Visniec, na entrevista que deu previamente ao Teatro Municipal Joaquim Benite, a ser publicada hoje nos Textos de Almada, onde ressalva, aliás, que "o olhar de um escritor sobre um fenómeno deste género não é igual ao de um jornalista (...). Aquilo que me interessa é o grito de dor universal contido nos dramas individuais", aponta. "Eles vêm do Paquistão, do Afeganistão, da Somália, da Eritreia, da Síria, do Iraque, da Líbia, do Mali, da Argélia, de Marrocos, do Haiti e de muitos outros lugares onde a vida deixou de ser compatível com a ideia de futuro. São milhões. Quantos milhões? Não se sabe. Chamam-lhes "migrantes" e têm uma única coisa na cabeça: a vontade de chegar à Europa", escreve o autor na declaração de intenções que antecede a dramaturgia da peça que se estreia esta noite, no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada, com encenação de Rodrigo Francisco. Amanhã é a vez de o autor conversar pessoalmente com o público, às 18.00.
O número que salva vidas?
E quando o pano sobe, já há alguém a apontar as lanternas para os rostos dos que se acomodam na embarcação, demasiado frágil para chegar a bom porto. O barco só pode levar cem, mas há almas clandestinas que se emaranham no porão, vidas periclitantes denunciadas pelo bater do coração, assolado de medo, injetado de adrenalina. O traficante que os conduz pelo breu da noite ainda não percebeu, mas não tarda é avisado. Para já, profere bem alto um número importante, o número salva-vidas para o dia seguinte. Sem falinhas-mansas. "Puseram os telemóveis a carregar? Esses aparelhinhos são as vossas portas de entrada na Europa. Bom, agora vão todos gravar um número novo. Ponham-no à frente dos outros todos... Amanhã este número vai ser o vosso bem mais precioso. Até o telemóvel de Deus, se por acaso Ele tivesse um, de nada vos valia amanhã de manhã; mas este aqui sim... Então marquem... 0... 0... 3... 9... 0... 2... 9... 2... 7... 9... Outra vez 9... Outro 9... Que número é este?" Há alguém que timidamente responde. "É o número de emergência da guarda costeira da Europa."
Só que a Europa não tem 112. As instruções chegam logo a seguir para que não restem dúvidas. "Este é o número de emergência da ilha de Lampedusa, em Itália, onde vão chegar amanhã de manhã. Aquele que entrar em pânico, que se puser aos gritos ou que se atreva a pôr-se de pé, vai borda fora. Estamos entendidos? Os peixes é que agradecem. Podem rezar, desde que eu não oiça nem um sopro. E podem vomitar: sirvam-se do saco de plástico que vos dei...", reitera, implacável, o ator Rui Silva, que vê na personagem uma forma de se aproximar dum tema tão atual. Nas pesquisas que fez sobre o tema aprendeu mais sobre o mar onde se move em cena e também sobre o "outro mar", o do deserto. "Li um artigo sobre o outro mar, o deserto que eles atravessam antes de chegar ao mar e que não é falado, há pessoas que morrem naquelas carrinhas de caixa aberta porque caem, são travessias de duas semanas", diz em conversa com o DN, após o ensaio.
Dos que sobrevivem ao deserto e se lançam ao mar de Migrantes, estão a bordo os milhões contados pelo escritor romeno que se inspira em situações reais. "Na minha peça, proponho cenas breves e situações dramáticas, através das quais procuro sugerir o grande dilema moral da Europa. Mas, sobretudo, desejo captar o lado emocional e humano do fenómeno. É uma tragédia da humanidade que se desenrola à nossa frente", relata Matéi Visniec. Desde os tripulantes anónimos e paralisados que ouvem passivamente as ordens do chefe do barco, ao jovem Elihu, da Eritreia, que consegue chegar a Inglaterra e trazer a família, em troca da córnea e do rim que teve de vender, por ser um alvo demasiado vulnerável do homem da mala, o traficante de órgãos, interpretado por Adriano Carvalho.
"Gosto de chorar com os meus dois olhos", dirá Elihu, que está prestes a deixar de o poder fazer. Também a cantora e a bailarina muçulmanas que se escondem atrás da ijahb, e que cantam e dançam em silêncio. E há o político, o presidente, o homem do discurso "politicamente correto", numa peça que põe o dedo na ferida dum flagelo com proporções devastadoras.
"Há aqui duas grandes teses nesta peça, uma é a hipócrita distinção entre refugiado económico e refugiado político, a outra é que o discurso politicamente correto adotado pelos media e pelos governantes só vem fazer que se torne impossível o debate e a discussão do tema porque fica tudo muito camuflado, e é essa a tese do Visniec; enquanto as coisas não forem ditas claramente, não se consegue chegar a uma solução", considera Rodrigo Francisco, diretor artístico do Teatro Municipal Joaquim Benite e encenador da peça, enquanto assegura que o texto fala por si e que a intenção foi torná-lo o mais claro possível junto do público.