Há 90 anos, em abril de 1929, nascia Milan Kundera na maior segunda cidade da Checoslováquia, Brno. O dia em que nasceu é dado a histórias mentirosas, mas o que lhe aconteceu em 1970, a sua expulsão do Partido Comunista; em 1975, o exílio em França, e em 1979 a retirada da cidadania checa, mostra que o dia 1 de abril foi, no seu caso, mesmo uma data azarada. No entanto, a bem da verdade, a República Checa decidiu devolver ao escritor essa cidadania perdida no passado dia 6 de novembro..A cerimónia de devolução da cidadania a Milan Kundera decorreu muito despercebida e o embaixador checo que se deslocou a casa do escritor no dia 28 de novembro deu-lhe em mão o certificado que o faz regressar várias décadas atrás. O escritor aceitou, mas não se lhe conhecem reações. Nada que espante o primeiro editor português de Milan Kundera, Manuel Alberto Valente: "Foi devolvida demasiado tarde e de um modo muito discreto, porque o Milan não deve ter querido de outra forma.".Para o ex-editor de Milan Kundera, o escritor "não deve ter dado grande importância ao ato e se essa cerimónia foi uma correção da história - se é que se pode emendar - é uma atitude justíssima para um homem com 90 anos. Porém, o mais correto seria que além da devolução da cidadania lhe atribuíssem o Prémio Nobel da Literatura"..O conselho de Valente é corroborado por muitas outras personalidades, pois o seu percurso literário justifica mais do que a outros escritores que já receberam a distinção da Academia Sueca: "Por várias vezes tenho publicamente escrito e dito que o caso do Milan Kundera é flagrante na injustiça de não atribuição do Nobel, porque acho que o mereceria mais do que alguns e algumas que o tiveram. Não tenho a mais pequena dúvida, embora também saiba que a escolha do Nobel vale o que vale.".Na nova vida em França, onde Kundera deu aulas na Universidade de Rennes, o escritor recebeu a nacionalidade francesa ao mesmo tempo que perdia a checa. Dois anos depois, após a eleição do presidente François Mitterrand, o ministro da Cultura Jack Lang concedeu-lhe a cidadania francesa ao mesmo tempo que os leitores franceses o elegiam como um dos grandes autores após o lançamento de Livro do Riso e do Esquecimento (1978). Cinco anos depois, Kundera publica o seu livro mais famoso, A Insustentável Leveza do Ser, e foi reconhecido em todo o mundo..Portugal não foi exceção. Segundo Manuel Alberto Valente o sucesso deste romance foi avassalador: "Estava na editora D. Quixote e foi o terceiro livro publicado quando criámos a coleção icónica Ficção Universal. Tinha acabado de rebentar em Paris e não houve dúvida em o incluir. Aliás, foi uma história muito curiosa porque herdámos de Snu Abecassis aquilo que hoje se chamaria o scout, um amigo dela que vivia em Paris que lhe escrevia a dar notícias sobre o que estava a ter êxito literário, e um dia recebemos uma carta em que falava com grande entusiasmo da Insustentável Leveza do Ser e do sucesso que estava a ter em França. Fizemos imediatamente os contactos com a editora Gallimard e publicámos o livro logo que possível. Que teve na altura um eco em Portugal não só nas vendas mas também de apropriação do título, sendo que, por exemplo, na Assembleia da República os deputados começaram a falar da insustentável leveza da política e a expressão passou a aplicar-se a tudo. Era uma prova da repercussão do romance.".imagemDN\\2019\\12\ g-b8fe5977-7ecf-4d23-b9c8-22798face250.jpg.A retirada da cidadania a Kundera não foi um ato isolado mas uma situação generalizada após a invasão de Praga em 1968 pelas tropas do Pacto de Varsóvia para abafar a sublevação contra o regime comunista. Em 1989, contudo, a Revolução de Veludo permitiu a muitos checos a quem acontecera o mesmo recuperarem a cidadania. Kundera recusou-se a seguir o processo burocrático e a sua situação manteve-se inalterada, até porque considerava que os mais próximos do presidente Vaclav Havel eram a favor de resolução da questão. Só há um ano é que o primeiro-ministro checo, em visita a Paris, se encontrou com o escritor e desfez o equívoco com um pedido de desculpas e uma homenagem pública..A reconciliação de Kundera com o país natal não tem sido pacífica. Manuel Alberto Valente tem a memória de um encontro com o escritor em Paris que ilustra este processo controverso: "Ele era um anticomunista feroz e um opositor desse regime, mas quando regressou à República Checa depois da queda do Muro de Berlim e da instauração de um novo regime democrático no seu país, ao contrário do que se poderia esperar e de o ver entusiasmado, Kundera vinha profundamente desagradado com o que tinha visto. Ele dizia que agora a televisão era horrível e que ao menos no tempo do comunismo a programação era censurada mas viam-se bons filmes e peças de teatro, ou que o comportamento da juventude era horrível, uns malcriados e não como no tempo do comunismo em que havia disciplina. Eu disse-lhe: Está a ver bem o que está a dizer! Foi muito curioso verificar como uma pessoa anticomunista reagia mal a esta nova sociedade pós-comunista, a democracia contaminada pelos piores vícios do Ocidente que encontrou no seu antigo país. Por isso, quando soube da notícia da devolução da cidadania checa, o que pensei foi que Kundera a deve ter visto com alguma ironia. Tanto mais que desde há muito é abertamente um cidadão francês e cortou com as suas origens.".Quanto à ligação de Milan Kundera com Portugal, há muito pouco a contar. Segundo Valente, o escritor é uma pessoa "muito discreta e ao mesmo tempo muito afável na relação que tem com os outros, mas muito reservado em termos de convívio. Nunca consegui que cá viesse e tentei-o várias vezes, mas era isso que acontecia com outras deslocações promocionais dos seus livros: contam-se pelos dedos. Não era homem de andar em viagens desse tipo"..A Insustentável Leveza do Ser é o livro que lhe dá a grande projeção internacional e só consegue escapar à prisão do registo desse livro mais tarde. Para o ex-editor, "o registo do Kundera é mais ou menos o mesmo até ao momento em que decide passar a escrever em francês. Nessa altura há uma alteração no registo literário que é, talvez, resultante da utilização de uma outra língua. Ao passar a escrever em francês é forçoso existirem alterações na própria escrita".