Tudo indicava que 2020 iria ser um ano em grande para Miguel Ângelo, entre o muito aguardado regresso dos Delfins, marcado para o Rock in Rio, um sem-fim de concertos com a Resistência e especialmente a digressão de apresentação o último disco a solo NOVA (pop), interrompida logo em março, apenas após três concertos, devido à pandemia..Lançado no final do ano passado, será reeditado a 26 de setembro, num formato especial em vinil branco, por ocasião do Record Store Day, mas antes voltará novamente a ser apresentado ao vivo, num concerto marcado para amanhã (sábado, 5 de setembro) no Theatro Circo, em Braga. Feito a meias com gente como Filipe Sambado, Chinaskee, Surma e D'Alva, NOVA (pop) deu um novo impulso à carreira do músico e cantor, que em 2019 celebrou 35 anos de carreira, alargando o seu universo musical para os territórios da pop mais eletrónica, mas também a um público mais jovem. Uma decisão "radical", como faz questão de sublinhar nesta entrevista ao DN, na qual também fala da crise na "indústria dos concertos", decorrente da pandemia e da "conotação negativa" que os Delfins ainda têm para muita gente..Como é que lidou com um ano tão atípico, que devia ter sido em grande, com a apresentação deste novo disco, os concertos de regresso dos Delfins e uma longa digressão com a Resistência, mas acabou por ser exatamente o contrário, tal como para a maioria dos artistas? É verdade, havia esse regresso dos Delfins, a tour de verão da Resistência, que é sempre muito participada, é incrível. E, claro, a digressão de apresentação da NOVA(pop), que teve início em janeiro, em Ponte de Lima, e ainda passou pelo Teatro Aveirense, antes de ser tudo interrompido. Ou seja, passei do melhor ano da última década e meia para zero [risos]. Mas houve coisas interessantes a ser feitas durante este período, até porque às vezes as adversidades obrigam-nos a arranjar algumas soluções, e nem falo tanto da parte criativa, mas da parte organizacional desta indústria dos espetáculos..Como assim? Já levo 35 anos de carreira e nunca houve, por exemplo, uma associação de músico em Portugal, como agora se está a tentar formar. Há um sindicato, mas mais direcionado para os músicos de orquestra e alguns do jazz. E o mesmo se passa com os agentes, os promotores ou os técnicos, que nas manifestações deste últimos tempos se começaram a organizar, pela primeira vez, como classes de uma mesma indústria, o que é incrível, porque estiveram sempre cada um para seu lado..Porque é que isso acontecia? Porque havia trabalho e as coisas corriam bem para todos, mas quando de repente todos sofremos por igual, temos de ter alguém que nos represente, tal como todas as restantes indústrias, como a hotelaria ou a restauração. Começaram por surgir alguns grupos nas redes sociais e agora, finalmente, já se começou a dar os primeiros passos para a criação dessas associações, para assim também podermos chegar ao poder político e apresentar as nossas ideias para o setor. O tempo de confinamento representou também muitas horas de trabalho e ao telefone, e na realidade algumas coisas deram fruto..Por exemplo? Como a lei que obriga as entidades públicas a pagar 50% do valor do contrato, para ser depois distribuído por todos os elementos da equipa. Não sendo perfeito, já é um modo de minorar esta situação tão grave. É bom não esquecer que, por lei, fomos proibidos de trabalhar, porque o nosso trabalho punha em risco a saúde pública. Fomos proibidos, mas e agora? Quando os pescadores são proibidos de pescar mais sardinhas, devido às quotas europeias, também recebem uma compensação para ficar em casa. O problema é que a cultura ainda não é encarada como a atividade económica que é e tanto contribui para o PIB nacional. E não falo só dos empregos diretos que gera, mas também da parte turística e da restauração, que também ganham bastante sempre que há um festival ou um concerto. Eu percebo que o Ministério da Cultura não tenha força para dar resposta a tudo, mas se calhar já era tempo de esta indústria passar para a alçada do Ministério da Economia [risos], porque é uma atividade económica muito forte e está completamente desamparada..E fora isso, como ocupou o tempo? Aproveitei para ler, ouvir música, revisitar discografias de artistas de que gosto e de outros que não conhecia tão bem. Mais do que produzir, estive a interiorizar. E também aproveitei o facto de ter um pequeno estúdio, onde posso trabalhar sozinho, para fazer algumas experiências, que poderei usar no futuro. Pelo contrário, não fiz muitos lives na internet, porque não me pareceu muito interessante para a promoção deste disco, que é bastante eletrónico. Tudo o que fiz a esse nível foi pago, até os técnicos de estrada receberam, e foram feitas para o estrangeiro, para as comunidades de Boston e Toronto. E também dei um concerto online com a Resistência, na Casinha dos Xutos, com todas as condições de transmissão. De qualquer forma, disse logo à minha agência que, mal a lei o permitisse, queria voltar à estrada, e ainda consegui recuperar algumas das datas entretanto canceladas..Como é a sensação de voltar a pegar numa digressão que mal tinha começado, ainda por cima para apresentar um disco novo, tantos meses depois? Pois, houve de facto um balde de água fria, que nos põe a pensar se ainda faz sentido ou se ainda vai dar. Percebi logo que quando voltasse já não tinha um disco novo e teria de comunicar esta digressão de outra forma. Portanto, este espetáculo já não será exatamente igual ao que estava a fazer no início do ano, porque também sei que muitas das pessoas que me vão ver agora fazem-no apenas por querer ir ver um concerto ao vivo. Nesse sentido, tenho de lhes dar algo um bocadinho diferente daquilo que estava a fazer antes. Vou também tocar algumas coisas mais antigas, alguns temas dos Delfins, e vou continuar a ter como convidados alguns dos músicos que participaram no disco, o Filipe Sambado, o Chinaskee, a Surma ou os D'Alva, tocando também algum repertório deles. E como entretanto vou reeditar o álbum em vinil a 26 de setembro, no Record Store Day, também tinha mais essa razão para regressar agora aos palcos com o NOVA (pop)..Que significado tem este regresso? Tem um significado enorme, pois não só é uma rentrée após o verão como representa também o regresso a uma atividade. Com menos gente, com as pessoas sentadas, com máscara e muitos outros fatores que vão tornar os espetáculos diferentes, mas também, estou certo, com toda a gente, de um e outro lado do palco, mortinha para estar lá. O mais importante, agora, é passar a mensagem de que os concertos são um sítio bom e seguro para se estar..Como é que surgiu esta ideia de fazer um disco com músicos mais novos que, de certa forma, acabaram por revolucionar o seu universo musical? Foi quando comemorei os 35 anos de carreira. Lancei na altura alguns singles, um deles até foi remisturado pelo Rui Maia e chegou a passar na Antena 3, o que me abriu um pouco mais o mercado. E dei por mim a pensar que quando chegamos a esta altura da carreira, ou conseguimos renovar o nosso público, ou nunca mais passamos da cepa torta. E que o devia tentar fazer de uma forma mais radical do que quando o havia tentado fazer sozinho. A realidade é que se eu fizer uma canção sozinho, é uma coisa, e se a fizer a meias com o Filipe Sambado é outra, não há como o negar. O NOVA (pop) é resultado dos convidados, todos eles fazem parte do disco, foram os produtores das respetivas faixas e tiveram total carta-branca para trabalhar. Eu apenas acatei tudo o que eles fizeram, e gostei. Fui trabalhar nos vãos de escada onde eles costumam trabalhar, que nada têm a ver com as condições a que estou habituado, mas isso foi essencial para entrar nos respetivos universos sonoros de cada um, que era o que me interessava..E resultou? Claro que sim, especialmente quando depois vemos um tema como o Carnival, feito com os D'Alva, no top da Antena 3 durante dois meses, que era uma rádio onde eu já não passava há algum tempo. E se calhar também vai acontecer nestes espetáculos ter gente que vai para ver o Filipe Sambado ou os D'Alva e, por arrasto, também ouve as outras canções. Foi decisão perfeitamente assumida essa de ir ter com músicos da nova geração que eu também admiro..Qual foi o critério de seleção dos convidados? Alguns, como os D'Alva, já eram amigos, mas o Chinaskee, que foi quem me apresentou ao Filipe Sambado, foi meu aluno da ETIC, onde dou uma cadeira anual da Produção Musical. Aliás, o primeiro EP dele foi gravado no âmbito dessa cadeira. Já a Surma, conheci-a numa gala da SPA, e gostei tanto dela que a convidei logo. Mandei-lhe o tema Aquista e, claro, ela trocou-me as voltas todas, e eu tive de me trocar todo também, para conseguir entrar de novo na canção. Passámos um dia de sonho em estúdio, a trabalhar, porque a Surma é como um sol que ilumina qualquer sítio onde vai. Acima de tudo foi um álbum que me abriu algumas portas, até dentro da minha cabeça, ao nível da criatividade e do trabalho com o digital. E ao vivo tem também um resultado muito forte, por via desse encontro entre diferentes gerações da pop. Também notei que estas gerações mais novas têm muito menos preconceitos do que as anteriores. A atitude deles tem apenas a ver com música. O Sambado tanto faz um tema de rock and roll sónico como uma canção tipo Fausto Bordalo Dias. E notei isso logo de início, quando os conheci, em relação aos Delfins, que para algumas pessoas têm uma carga mais pesada. Pela primeira vez em muito tempo, senti que olharam para mim como o gajo dos Delfins, sim, mas sem essa conotação negativa..Porque é que se criou essa imagem negativa dos Delfins? Por sobre-exposição. Portugal é um país pequeno e fomos uma banda com demasiados sucessos, talvez. E depois também há um lado de preconceito, relacionado com as diferentes tribos musicais e urbanas, que está cada vez mais obsoleto. Esta malta que trabalhou comigo não está nem aí para dizer mal deste ou daquele por razões estéticas ou musicais. Se alguém for um sacana ou um racista, aí há razões, agora pela música? Reconheço que os Delfins venderam muitos discos, deram muitos espetáculos, depois metemo-nos na televisão... É natural que a dada altura tenha havido algum cansaço..Mas mesmo assim iam voltar neste ano, depois de um primeiro e apoteótico regresso no ano passado, com a Orquestra Sinfónica de Cascais, nas Festas do Mar, em Cascais? Sim, esse concerto correu tão bem e foi uma enchente tão grande, que passada uma semana já tínhamos algumas agências a propor-nos mais concertos. E houve uma que nos agradou, pelo pormenor da produção, e aceitámos fazer alguns concertos de celebração das canções dos Delfins. Não se trata de um regresso à atividade, nem de canções novas, mas apenas de tocar aqueles vinte singles que toda a gente conhece. Íamos ao Rock in Rio, à Feira de São Mateus e a mais dois ou três sítios, mas tudo foi adiado para 2021..Como foi voltarem a estar juntos, dez anos depois da separação da banda? Nós nunca perdemos o contacto uns com os outros. O Jorge Quadros é o meu baterista, e até há pouco tempo o Rui Fadigas era o meu baixista, o Fernando Cunha toca comigo na Resistência e o Luís Sampaio, que é atualmente diretor da GDA, continua a ser um grande amigo. Antes de voltarmos a tocar juntos apenas decidimos fazer uma experiência, que foi irmos jantar todos juntos, para percebermos se ainda havia química entre nós enquanto grupo. Foi engraçado, porque sempre fomos fãs da parvoíce, da autocrítica e até de alguns insultos gratuitos aos amigos. E foi exatamente isso que aconteceu ao longo de um jantar de mais de duas horas, muito divertido e bem regado, que nos deu vontade não só de voltarmos a estar juntos como, eventualmente, de darmos um concerto..Miguel Angelo convida Filipe Sambado e Chinaskee.Theatro Circo, Braga, 5 de setembro, sábado, 21.30. Bilhetes a 12 euros.