Miguel Ângelo entre a beleza divina e o inferno de Dante

Um filme em que a arte é coisa mundana. <em>Sin - O Pecado</em>, de Andrei Konchalovsky, não é um <em>biopic</em> do homem da Renascença italiana, mas uma meditação sobre os contrastes do artista atormentado que não chegava para as encomendas.
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Era dotado de uma espiritualidade semelhante à de alguns dos antigos profetas, pleno de visões sublimes e paixão moral. A sua personalidade humana era, porém, bastante censurável." Assim surge descrito Michelangelo Buonarroti (1475-1564) na pequena biografia assinada por Donald Culross Peattie para a Reader"s Digest, e assim o vemos em Sin - O Pecado: figura irritável, por vezes consumida pela arrogância e impulso titânico, mas sempre devota da beleza. Quando a câmara o apanha pela primeira vez, são os pés que vemos. Umas sandálias andrajosas a caminhar sobre terra batida. Ouvimo-lo proferir injúrias contra a cidade de Florença, que, a princípio amaldiçoada nas suas palavras, acaba por se revelar objeto do seu fascínio.

Com esta espécie de oração furiosa, que condensa a fealdade e o sublime, dando conta da alma poética do artista (recorde-se que deixou sonetos escritos), somos introduzidos a uma figura que não será retratada com pruridos académicos. Afinal, o seu realizador é Andrei Konchalovsky, o agora veterano que escreveu com Tarkovsky o argumento de Andrei Rublev (1966), obra-prima deste género de cinema dedicado aos artistas. O Pecado, por sua vez, procura algo para além do retrato: um período da vida de Miguel Ângelo que permite sondar o tormento da ambição artística em estilo de parábola.

Interpretado por Alberto Testone, quase com a mesma garra com que Kirk Douglas interpretou Vincent van Gogh, o escultor de David e da Pietà encontra-se aqui na condição de um génio serviçal, com muitos demónios ativos e mais encomendas do que aquelas que é capaz de levar até ao fim. "Cada um dos meus projetos vai para além do limite das minhas forças", diz a certa altura. E é ainda enquanto trabalha a pintura no teto da Capela Sistina que testemunhamos o fervor que punha em cada obra, segundo rezam as crónicas, ignorando o sono, as refeições e o banho... Forçado a dar como terminado esse trabalho que o ocupou durante quatro anos, Miguel Ângelo sai da capela em pânico com a ideia de ter ali uma obra menor. Mas quando um dos seus aprendizes lhe traz a notícia de que o Papa Júlio II considera os frescos uma obra "divina", sabemos que o divino é um caminho com muito de inferno terreno.

Em pano de fundo de O Pecado está a rivalidade entre os Della Rovere e os Médici, duas famílias influentes no início século XVI, com Miguel Ângelo pelo meio, a fazer equilibrismo. Assim que Júlio II morre, o artista deve dedicar-se às dezenas de esculturas que irão adornar o mausoléu (nunca concluído) desse membro dos Della Rovere. Mas, apesar do compromisso, assim que é solicitado pelo novo Papa no Vaticano, Leão X, do clã Médici, não se sente capaz de recusar a encomenda da fachada da Basílica de São Lourenço. Uma atitude que tem tanto de ganância workaholic (não queria que Rafael ficasse com o serviço) quanto de vaidade e orgulho desmedidos. A sua única condição era que o deixassem trabalhar sozinho.

No entanto, raras são as vezes em que se encontra aqui sozinho. Rodeado pelos pedreiros nas montanhas de Carrara, ele será um "louco", um pouco menos extravagante do que o Fitzcarraldo de Herzog (que fez deslocar um barco a vapor sobre uma montanha), assumindo avidamente a posse de um colossal bloco de mármore como garante do futuro da sua arte: os quixotescos esforços humanos à volta do seu transporte são a grande metáfora do filme e o maior pecado de Miguel Ângelo.

A abordagem de Konchalovsky desta ideia de grandeza não é, em todo o caso, um mero sublinhar daquilo que "o monstro" de mármore simboliza. A sua justa consciência pictórica está por toda a parte, em cada plano que, por um lado, escapa ao efeito mimético da pintura da época, e, por outro, capta a Renascença italiana através das ruas mais escuras e sujas. Um olhar que expulsa qualquer réstia de romantismo, sem deixar de procurar no contraste bíblico e dantesco de Miguel Ângelo a inquietação da genialidade. Estamos a falar de alguém que sabia de cor a primeira parte de A Divina Comédia de Dante: O Inferno.

dnot@dn.pt

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