Terá sido há quase vinte anos, por altura do lançamento de Vou para Casa (2001), de Manoel de Oliveira. Graças à amabilidade do produtor do filme, Paulo Branco, tive o privilégio de conversar com Michel Piccoli num hotel de Lisboa. Digo "conversar" porque me parece insuficiente a noção de que estávamos a cumprir o ritual de uma entrevista. Em boa verdade, creio, até que, como entrevista, o resultado terá sido algo frustrante. Será egoísmo da minha parte, mas ficou a conversa, precisamente esse "outro" modo de comunicação que a nossa vertigem mediática passou a desvalorizar..A agenda do dia era apertada. Piccoli tentava integrar todas as informações sobre o que iria acontecer naquela tarde e dava mostras de um misto de inquietação e ironia - como corresponder a tudo o que esperavam dele? O certo é que não se escusou a tecer algumas considerações breves, mas cristalinas, sobre o seu trabalho com Oliveira..Não seria necessário grande esforço de interpretação "psicológica" para compreender que se tratava de uma relação cúmplice: realizador e ator coabitavam um país em que, para lá das barreiras geradas pelas diferentes línguas, o humor funcionava como decisivo fator de comunicação. Mais que tudo, Piccoli fazia questão em sublinhar a sua autoexigência no sentido de escutar, compreender e aplicar as observações sobre a sua personagem transmitidas por Oliveira. Podia ser uma fórmula: "o realizador é que manda, eu limito-me a segui-lo..." Em boa verdade, era um método de prospeção, um instrumento afetivo para a materialização de uma personagem..E não será necessário citar muitos exemplos da sua vasta filmografia (mais de duas centenas de títulos...) para reconhecer que essa capacidade de trabalho de Piccoli deixou marcas muito especiais nos momentos mais diversos de uma carreira que começou antes da Nova Vaga, passou pelos seus fulgores - lembremos o maravilhoso O Desprezo (1963), em que contracena com Brigitte Bardot, sob a direção de Jean-Luc Godard - e prosseguiu muito para lá da sua decomposição, através de variadíssimos contextos de produção..Penso, desde logo, nesse filme genial que é A Bela Impertinente (1991), em que Jacques Rivette filma a intimidade de um pintor (Piccoli) com o seu modelo (Emmanuelle Béart), num exercício raro sobre a estética. Mais exatamente: sobre o modo como a vulnerabilidade humana (a nudez do modelo) se transfigura em prodígio formal e evento artístico..E penso também na vertigem paradoxal de A Grande Farra (1973), centrado num grupo de amigos - Marcello Mastroianni, Philippe Noiret e Ugo Tognazzi, além de Piccoli - que decidem comer, comer, comer... até morrer. Realizado por Marco Ferreri, é um daqueles filmes em que, de facto, através de uma pulsão fúnebre resgatada por um humor cruel, podemos encontrar o saldo das muitas ilusões libertárias acumuladas ao longo dos anos 1960..Se é que a vocação plural de Piccoli se deixa resumir numa singular ideia dramática, diria que ele foi um paciente investigador dos contrastes humanos, trabalhando sempre para não ocultar o "material" através do "espiritual" (e também o contrário). Talvez por isso mesmo, Vou para Casa ocupa um lugar tão especial na sua trajetória e também, claro, na filmografia de Oliveira. É a história de um ator que, na sequência de um acidente em que morrem os elementos mais próximos da sua família, quer desistir e... "voltar para casa". Na tristeza branda do filme, se soubermos aplicar a tão desvalorizada virtude da paciência, podemos detetar o eco das gargalhadas partilhadas pelo ator e realizador. Afinal, ser espectador é também aceder a essa silenciosa felicidade.