Reza está preso há exatamente um ano e oito dias. Tem 17 anos, o último dos quais passado num campo de refugiados na Hungria, perto da fronteira com a Sérvia. Há dois destes campos, no sul da Hungria, um em Tompa e outro em Röszke. São prisões, cercadas por grades de metal altas, mas têm outro nome - "zonas de trânsito", porque não são completamente fechadas. A saída, para a Sérvia, está aberta. A entrada na Hungria, e na União Europeia, é que não. Reza é um jovem iraniano. Chegou com um primo, a mulher e os filhos, mas rapidamente passou à condição de "menor não acompanhado" porque as autoridades de Budapeste se recusaram a conceder-lhe qualquer estatuto de proteção, e não lhe permitiram sair do campo. À família deram, por isso os primos entraram na Hungria, Reza ficou no limbo.. Há mais 99 menores em Röszke, numa "cidade" onde as casas são contentores, os limites são de arame farpado, e tudo é guardado por militares armados. Falámos com ele ao telefone, graças à ajuda da advogada húngara Timea Kovacs, que o representou nas duas tentativas falhadas de obtenção de asilo. Reza conta: "Fui ao médico ontem. Não durmo há dois dias, desde que recebi a última decisão, há três, de que o meu pedido de asilo foi negado novamente. O médico deu-me um comprimido para tomar durante um mês e disse-me para tentar não stressar. Talvez ele esteja certo. Eu não consigo dormir à noite. Às vezes brinco com o meu telefone, mas depois fico ali deitado a pensar. O médico disse-me para não pensar muito, estou a tentar, mas é difícil. É difícil aqui. Todas as manhãs acordo e vejo as mesmas coisas, é muito aborrecido. O maior problema é que estamos fechados aqui dentro. Viemos da Sérvia, com documentos, não ilegalmente. Todos nós. O escritório de imigração brinca connosco, eles arrastam tudo meses, todas as decisões. Além disso, quando vamos para outro setor, a polícia vem connosco. Porquê? Nós não fizemos nada de mal. Porque estamos fechados aqui dentro? Pensar demais é como uma bomba na tua cabeça. E não só eu. É difícil para todos. Porque é que o gabinete de imigração nos está a fazer tudo isto?".Em Portugal... também.A condenação foi quase unânime quando os Estados Unidos da América, por decisão da administração Trump, decidiram prender menores separados da família quando atravessavam a fronteira com o México. Mas será que os governos europeus tratam melhor os menores que tentam entrar na União Europeia? Esta foi a pergunta que lançou o consórcio europeu de jornalismo de investigação Investigate Europe, do qual o DN faz parte, há mais de dois meses, e que levou a visitar alguns dos países europeus mais pressionados pela chegada de migrantes..Da longínqua ilha de Mayotte, nas Comores, que é um departamento francês em África, ao campo de Moria, na ilha grega de Lesbos, de Ceuta e Melilla, possessões espanholas em Marrocos, aos cosmopolitas aeroportos de Berlim, Lisboa ou Londres há exemplos de menores detidos cujo único crime é estarem a tentar entrar em território europeu sem permissão. E contra as regras internacionais.Portugal não é exceção: segundos os últimos dados oficiais, em 2018 foram detidas na fronteira 24 crianças não acompanhadas. Ficaram privadas de liberdade, em média, seis dias. Já as 51 crianças que tentaram entrar no país com familiares foram detidas na fronteira "por períodos que variam entre um e 59 dias (em média, 16 dias)", explica o relatório AIDA (base de dados de refugiados), que conclui: "Esta prática continua a ser preocupante à luz das normas internacionais que proíbem qualquer detenção de crianças migrantes."Mas Portugal é, no contexto europeu, um dos relativos "bons exemplos" nesta matéria. Desde logo porque não tem a mesma pressão migratória que a Grécia, a Espanha ou a Itália, por exemplo. Os números de crianças migrantes que tentam entrar em Portugal são muito menores. A retórica de Lisboa também é diferente de países como a Hungria - que fazem da migração uma bandeira de combate político. Portugal anunciou estar disposto a aceitar dez mil refugiados - o triplo da sua quota acordada com a UE. O primeiro-ministro António Costa foi claro: "Precisamos de mais imigração e não vamos tolerar nenhuma retórica xenófoba." O ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, acrescentou que aceitar refugiados é "uma oportunidade económica e social".Em 2018, quando países mediterrânicos como Malta e Itália se recusaram a permitir o desembarque de barcos de busca e salvamento humanitário, Portugal ofereceu refúgio a migrantes e requerentes de asilo. O país assinou um acordo bilateral com a Grécia para realojar mil refugiados e requerentes de asilo e comprometeu-se a admitir 1100 da Turquia e do Egito. Mas isto é apenas um dos lados da história... Quando os requerentes de asilo apresentam pedidos nas fronteiras do país, são sistematicamente detidos - uma questão que foi assinalada em 2019 pelo Alto Comissariado das Nações Unidas, que na sua Revisão Periódica de Portugal levantou preocupações quanto à detenção sistemática de requerentes de asilo na fronteira. A lei portuguesa prevê a detenção de crianças, garantindo que deve ser dada "atenção especial" a vários grupos de "pessoas vulneráveis", incluindo crianças e crianças não acompanhadas. Contudo, de acordo com o Provedor de Justiça português, na prática esta lei não pode ser aplicada na maioria das instalações de detenção por falta de espaço e condições adequadas para as famílias e crianças: "As instalações são inadequadas para acomodar famílias, seja devido à ausência de quartos para famílias que garantam a privacidade e permitam que os membros da família fiquem juntos, seja devido à falta de equipamento para as crianças." Em 2017, a detenção de uma família requerente de asilo com crianças no aeroporto de Lisboa foi fortemente criticado pelo Provedor de Justiça, particularmente devido às condições inadequadas dadas a uma criança com necessidades especiais. Mais tarde, em julho de 2018, uma reportagem do Público mostrou que havia menores detidos no Centro de Instalação Temporária (CIT) do aeroporto, suscitando críticas da provedoria e da UNICEF. Em resposta, o Ministério da Administração Interna determinou que as crianças acompanhadas e não acompanhadas com menos de 16 anos não podem ser detidas por mais de sete dias. Na sua Revisão Periódica de Portugal (que teve lugar em maio de 2019), o ACNUR expressou a sua preocupação com a mudança na prática que resultou no reinício da detenção de crianças (e outros membros de grupos vulneráveis) na fronteira e recomendou que o país acabasse com a detenção de crianças, particularmente aquelas que não estão acompanhadas.A medida parece ter sido tomada para prevenir um abuso. Mas, se assim foi, os seus efeitos não são, exatamente, os desejados. Inês Carreirinho, coordenadora do departamento jurídico do Conselho Português para os Refugiados, aponta que "sistematicamente", nos aeroportos portugueses, se aplica a detenção dos migrantes que chegam para requerer estatuto de proteção. "Até 2016, habitualmente, crianças, famílias, mulheres grávidas, eram isentas de procedimento especial, e davam logo entrada em território nacional. A partir de 2016 passou a verificar-se um prolongamento dos períodos de detenção." A intervenção do ministro Eduardo Cabrita, que fixou os limites máximos da detenção, na prática, "legalizou" a situação. "A detenção nunca é do interesse da criança, em nenhuma circunstância", diz Inês Carreirinho. "Não estamos perante nenhum crime.". Mónica Farinha, presidente do CPR, acrescenta que muitas das crianças que chegam indocumentadas a Portugal são "vítimas de forma dupla, porque estão a fugir de uma situação perigosa e têm de se submeter a redes de tráfico humano para conseguir deslocar-se"..EUA e EU não tão diferentes.O Relatório Global das Nações Unidas sobre Crianças Privadas de Liberdade de 2019 é claro. Deter menores pela sua situação migratória é privá-las da sua liberdade, seja qual for "o nome ou justificação fornecida pelo Estado para privar as crianças da sua liberdade ou o nome da instalação ou local onde a criança é privada de liberdade". No entanto, a detenção por imigração de menores, sozinhos ou com as famílias, é uma prática generalizada nos Estados membros da UE, concluiu um relatório feito pela ONG Iniciativa para as Crianças Migrantes, em 2019. Esta prática é recorrente e subestimada, adianta o relatório. A diretiva de regresso da UE permite a detenção de crianças "apenas como último recurso quando não estão disponíveis medidas menos coercivas para completar o procedimento de regresso", explica o comissário europeu responsável pela imigração, Dimitris Avramopoulos. Mas esta ideia de "último recurso" é rebatida pela ONU no estudo sobre crianças privadas de liberdade, também publicado em 2019, que conclui que "... a detenção de crianças migrantes não pode ser considerada como uma medida de último recurso e nunca é do melhor interesse da criança e, portanto, deve ser sempre proibida. Isto aplica-se a crianças desacompanhadas e separadas, assim como a crianças com suas famílias. A detenção de crianças para "manter as famílias juntas" ou para a sua "proteção, onde faltam cuidados alternativos, nunca pode ser uma justificação". (página 12) No entanto, a diretiva de regresso está a ser revista e, numa proposta de reformulação, a Comissão Europeia defende "uma utilização mais eficaz da detenção para apoiar a execução dos regressos". A principal preocupação parece ser a de assegurar que mais requerentes de asilo rejeitados sejam deportados. Na mesma proposta (ponto 8), a Comissão aponta que vários Estados membros têm períodos máximos de detenção muito mais curtos do que a diretiva de retorno permite, e que isso é um obstáculo à eficácia da medida. A ONG Statewatch argumenta que a proposta da UE, a ser aprovada, "violaria as normas de direitos fundamentais, ampliaria maciçamente o uso da detenção e limitaria os direitos de recurso" - e por isso deveria ser rejeitada pelo Parlamento e pelo Conselho. O estudo da ONU tentou recolher dados de todos os países. Só 42 estados responderam. Dos 24 países que afirmaram proibir a detenção de crianças migrantes, apenas um é membro da União Europeia: a Irlanda..Burocracia do asilo.A Europa tem fronteiras estranhas. E é, burocraticamente, inacessível para qualquer refugiado. Ninguém pode (estando a fugir de uma guerra no Congo, de uma perseguição religiosa na Síria, ou de uma seca na Etiópia) pedir estatuto de proteção a nenhum país europeu sem tentar entrar nele, por terra, ar ou mar. À chegada, qualquer requerente de asilo tem de se submeter a um contacto com a polícia de fronteira, e não com um consulado ou um gabinete de apoio jurídico.É por isso que, enquanto os pedidos de asilo ou proteção são analisados, os migrantes são instalados em locais que têm nomes muito diferentes, mas significam todos a mesma coisa: podem ser "zonas de trânsito" (na Hungria), "zonas de segurança" ou "custódia protetora" (na Grécia), "hotspots" (Itália e Grécia), "centros de estada controlada de estrangeiros" (Espanha), "centros de retenção" e "zonas de espera" de aeroportos (França), "centro administrativo nacional de transmigração" (Bélgica) ou "unidade familiar" (Noruega). "Embora não sejam oficialmente chamados de centros de detenção, muitos destes lugares são de facto instituições fechadas e os indivíduos não têm liberdade para sair, o que os transforma em lugares de detenção, de facto", criticou um grupo de trabalho da ONU. Michael Flynn, no seu livro Privatising Punishment in Europe, estima que existem 260 destes "campos na UE com uma capacidade total de 47 000 camas"..O campo de Moria, na Grécia, ocupa uma antiga instalação militar. Está cercado por vedações altas e com rolos de arame farpado no topo. A entrada principal tem um portão, guardado pela polícia, mas está aberta. Os refugiados vivem em tendas e usam a cerca interior para secar a roupa. A cerca também é decorada com cartazes com desenhos humorísticos de animais e mensagens animadas para os transeuntes, em grego, inglês, francês, árabe e dari, para que ninguém perca. "Cheio de esperança", dizem todos. Um tem uma borboleta colorida e a mensagem: "Eu sou linda." "Eu sou forte", diz outro, com um leão desenhado. Um cartaz tem um bode sorridente. Diz: "Estou feliz por saltar por aí." Algumas das quase 5000 crianças em Moria fazem exatamente isso. Um cartaz com um macaco diz: "Eu sempre tenho ideias inteligentes." "Estou muito orgulhoso de quem eu sou", diz o pavão num cartaz por baixo do arame farpado. A mensagem mais cruel é a do cartaz da banana, com a frase "eu sou especial".Os seis rapazes chegaram todos no mesmo dia a Lesbos, a ilha grega onde persiste o campo de Moria. O mais novo tem 15 anos, o mais velho tem 17 anos, e todos vieram do Afeganistão. Foram colocados na zona segura do acampamento de Moria, onde os menores vivem sozinhos e na qual, teoricamente, os adultos não podem entrar. Mas a zona segura está superlotada, por isso não tiveram direito a uma das tendas. Tiveram de comprar uma na cidade, Metilene. Custou-lhes 30 euros. A tenda está a poucos passos das casas de banho comuns, que são inseguras à noite. Dormem todos juntos. Na cantina de Moria estão sentados em cadeiras de plástico. Não recebem qualquer tipo de apoio financeiro (que pode chegar aos 150 euros por mês para os adultos). Se quiserem beber um sumo o que fazem? "Podemos pedir a alguém mais velho um ou dois euros." Deixaram a escola no Afeganistão e não têm nada disso na Europa. Atravessaram o Mediterrâneo num frágil barco. "É como todos chegam aqui, num barco de borracha. Todos viemos com o mesmo. Éramos aproximadamente 40-45 pessoas, tanto crianças como adultos." Foram encontrados a meio caminho pela Guarda Costeira grega, que geralmente se aproxima dos barcos quando são avistados e depois os acompanha até às costas gregas. "A Guarda Costeira estava connosco mas eles não nos "apanharam", apenas nos disseram para continuarmos e que nos acompanhariam.""O nosso plano não é ficar na Grécia (eles dizem "Yunanistan"), mas ir para a Europa. Queremos ter acesso à educação e a uma vida segura." Eles têm parentes - primos e tios - na Europa: Bélgica, Alemanha, Suécia. "Onde vivemos, no Afeganistão, a maior parte do distrito é controlada pelos talibãs. Por isso, as pessoas que lá vivem não têm acesso à escola, à universidade, e é por isso que as pessoas nas áreas próximas têm medo de que, se os talibãs também tomarem o seu lugar, não teremos oportunidade de estudar." Foi desse medo que fugiram, garantem. Jawed fala da grande explosão em Cabul, que matou dezenas de pessoas, uns dias antes. No acampamento houve também uma grande briga. E há um rumor forte sobre a morte de um bebé aqui, em plena União Europeia, numa das tendas que se espalham a perder de vista..Campos de dissuasão.A maneira mais eficaz de descrever Moria é voltar a ler aquela frase do jovem afegão que quer sair dali e ir "para a Europa". Mas o campo apocalíptico, e inseguro, cheio de lama, é, à sua maneira, um cartão-de-visita pensado. Essa é, pelo menos, a ideia que dá Marco Sandrone, coordenador de campo dos Médicos sem Fronteiras (MSF) em Moria. Para ele, esta é a concretização consciente, da União Europeia, de uma "política de dissuasão". Ou seja, Moria é o que é para evitar que mais migrantes ali cheguem. É uma ideia que classifica de cruel, e falível, pois as pessoas continuam a vir: "É bastante claro para mim e para os MSF que esta política de dissuasão falhou completamente.". Panagiotas Nikas, da ONG Zeuxis, ajudou a criar o campo de Moria, em 2013, para acolher os refugiados que chegavam. Se o campo não melhorou nada, nestes últimos sete anos, "é uma escolha política". "Afirmo-o claramente. E é uma escolha política porque estas condições são usadas ou para dissuadir outros, como "olha que tipo de inferno existe, é para onde queres ir? Ou numa mentalidade que diz "está bem, eles vieram aqui, eles vão-se embora, o que podemos fazer"." Erik Marquart, eurodeputado e porta-voz dos Verdes sobre política de migração diz o mesmo." Temos uma situação em que a Comissão da UE e o Conselho Europeu falam de uma boa política de asilo quando o número de pessoas que fogem para a Europa diminui. Ao criar situações como as das ilhas gregas, estão apenas a fabricar melhores estatísticas. A política europeia visa tornar a fronteira externa tão mal gerida quanto possível para que as pessoas adorem ficar em zonas de guerra em vez de vir para a Europa." Gerald Knaus, o diretor do think tank European Stability Initiative em Berlim, o "arquiteto" do acordo UE-Turquia, também é claro sobre o sinal que Moria pretende passar: "Não posso julgar o que se passou dentro da cabeça de Alexis Tsipras. Não quero dizer que o tenham feito de propósito. Mas isso não importa. Qualquer que seja a motivação, a UE e a Grécia estão empenhadas numa política desumana, ilegal - e que não dissuade." A dissuasão obviamente não funciona, dizem os trabalhadores humanitários em Lesbos, que todos os dias observam as novas famílias e indivíduos apanhados no mar, a saírem dos autocarros e a serem conduzidos através do portão de arame farpado em Moria. A explicação pode ser lida num poema de Warsan Shire:."no one leaves home unless home is the mouth of a shark you only run for the border when you see the whole city running as well (...) you have to understand that no one puts their children in a boat unless the water is safer than the land".Inseparáveis em Marselha.Mas nem a poesia nem os números frios das estatísticas parecem convencer o comissário grego Avramopoulos: "Assegurar o rápido regresso dos migrantes em situação irregular não só tirará a pressão dos sistemas de asilo dos Estados membros e garantirá uma capacidade adequada para proteger aqueles que realmente necessitam de proteção, como será também um sinal forte contra a realização de viagens irregulares perigosas para a UE em primeiro lugar." Esse sinal escapou a Idriss e a Ahmad (nomes falsos), dois jovens marroquinos que fugiram a nado, pelo Mediterrâneo. Chegaram a uma das duas cidades "europeias" de Marrocos, Melilla, Espanha (a outra é Ceuta). Estas são as duas únicas fronteiras terrestres entre a União Europeia e África. Estão cheias de muros, arame farpado, vedações, detetores de movimento, câmaras de videovigilância, polícias. E, mesmo assim, todos os dias, há jovens que conseguem entrar.. Melilla era apenas uma passagem. Agora, Idriss e Ahmad estão do lado de cá do mar, na Marselha que dá um hino a França, e fala dos "ignóbeis entraves" que significarão qualquer coisa nas cabeças de dois adolescentes marroquinos do século XXI. São 17.00, o sol está a pôr-se, Imad e Mounir deixam o hotel onde moram há alguns dias. Sentamo-nos, no terraço de um café, na praça da Prefeitura. Em Marselha, o clima é ameno. Ahmad tem um boné preto, Idriss um boné cinzento. Idriss bebe um café, Mounir não quer nada. Desde que se conheceram em Melilla, os dois são inseparáveis. "Eu fugi. Vivia em Fez, a minha mãe é velha e doente. O meu irmão tem 10 anos. Eu fugi do país para ajudá-los financeiramente, para ajudá-los a viver melhor. Tentei atravessar a fronteira várias vezes por ano e meio. A polícia em Marrocos agarrou-me, bateu-me, bateu-me outra vez. Consegui atravessar a fronteira, depois nadei durante três horas, até Mellila, Espanha. Não me lembro exatamente quando, foi no inverno. Em Mellila conheci o Ahmad, ficámos juntos. Ficamos lá por vários meses, entre oito meses e um ano. Depois tentámos encontrar um barco", diz Idriss. "A minha irmã gémea ainda está em Fez. O meu pai e a minha mãe morreram há seis anos. Eu vivia lá com a minha irmã gémea, éramos órfãos. Eu saí para viver melhor. Uma vez tentei entrar num barco, mas a polícia espanhola bateu-me e libertou-me. Depois conseguimos entrar noutro barco", diz Ahmad. Amarraram garrafas vazias com cordas, enrolaram-nas à volta dos quadris. Foi assim que chegaram a Mellila. Nadaram três horas até à fronteira espanhola. "Fizemos um primeiro teste, um grande barco turístico, atracado, tentei içar-me ao longo da corda, para o barco. A corda virou-se, caí na água", diz Ahmad. "Tentei subir, consegui, estava no 2.º andar do barco, a tripulação encontrou-me, apanhou-me", diz Idriss. Então, a 30 de outubro, às três da manhã, conseguiram sair de Mellila. "Encontrámos um barco e ficámos escondidos por dois ou três dias. Ficámos no barco por um total de cinco dias. Não tínhamos ideia do destino do barco. Iria para a China? Para África? Eu não sabia."Dormiam colados um ao outro para não terem frio. Às vezes ouviam vozes muito próximas, as da tripulação. Eles em silêncio. Era um barco de carga. "Ao terceiro dia, fomos para a cozinha, estávamos com fome." E depois foram descobertos. A tripulação do cargueiro deu-lhes roupas quentes, comida. "Carne, não de porco" (eles são muçulmanos). O capitão era ucraniano, mas falava espanhol, inglês e francês. "Se nos tivessem trazido de volta, para dar a volta, eu teria saltado para a água. Eu não queria dar meia-volta", garante Ahmad. "No quinto dia, no barco, vimos pela janela: França, Marselha." A tripulação chamou a polícia. "Durante 15 dias, sentia angústia: Vou ficar em Marselha? Vou ser devolvido ao meu país? A polícia veio, tirou-nos uma fotografia, não nos fez nenhuma pergunta. Pegaram em nós e algemaram-nos. Fomos ao hospital, para fazer um exame médico, depois à esquadra da polícia. Na prisão, eu não sei que dia é hoje, que horas são. Para mim, não são 15 dias, são 15 anos, quase. Uma senhora, com um carro branco, veio à noite, pegou-nos e levou-nos para o hotel." Quando foram ao tribunal pela primeira vez, tinham passado oito dias no interior do centro, dentro da "prisão", como lhe chamam. "Prefiro ficar aqui na prisão do que voltar para casa." A mulher com o carro branco levou-os a um hotel chamado Le Croissant. (Desde então mudaram de hotel duas ou três vezes). "Agora que estamos em França, eu quero trabalhar." Ahmad quer ser cabeleireiro, Idriss era canalizador em Marrocos e gostaria de continuar a ser o mesmo em Marselha. Para isso precisam de ser admitidos no país, o que lhes parece agora a coisa mais normal do mundo..França recorde.Mas a França tem o seu próprio cartão-de-visita: "A França é o país que tem mais crianças migrantes detidas, depois dos EUA e do México. Mas há enormes diferenças. Há aproximadamente cem mil crianças em detenção relacionada com a migração nos EUA, cerca de 18 000 no México em 2018 e 2500 em Mayotte, enquanto na França continental havia 275 crianças no mesmo ano", explica Manfred Nowak, o advogado austríaco de direitos humanos que dirigiu o relatório da ONU. A comparação com os EUA é quase sarcástica, porque a França foi um dos países europeus que mais criticaram a política de Trump no caso das crianças migrantes. "Nós não temos o mesmo modelo de sociedade", disse um porta-voz do governo francês. "Nós não partilhamos os mesmos valores." Mas há uma ilha no Índico onde a França detém um número recorde de crianças: Mayotte, um "département d"outre-mer" (DOM) francês, localizado entre o continente africano e Madagáscar. Esta localização especial explica o importante número de pessoas que tentam entrar na França, através desta ilha. A grande maioria (cerca de 98%) dos migrantes vem da ilha Comores, situada mesmo ao lado de Mayotte, e os restantes vêm de Madagáscar e da região ocidental de África, e utilizam barcos frágeis para atravessar o mar. O número de menores detidos no centro de retenção de Pamandzi (CRA), o maior da França, é enorme. Em 2018, 1221 crianças foram detidas em Mayotte.A França foi condenada seis vezes, desde 2012, pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, por não respeitar a legislação sobre detenção de menores. Portugal tem essa folha limpa, por enquanto. As consequências da detenção estão identificadas: trauma, "stress tóxico", "emergência psicológica". Jack P. Shonkoff é um dos pediatras que estudaram o efeito da detenção de crianças migrantes (ensina em Harvard, onde dirige o Center on the Developing Child). Recentemente (outubro de 2019), publicou um artigo em que define as consequências para a saúde do "stress tóxico", que acontece quando "uma adversidade significativa desencadeia uma resposta biológica maciça "dentro" da criança, que permanece ativada até que uma sensação de segurança e proteção seja restaurada". O jornal oficial da Academia Americana de Pediatria publicou um artigo, em março de 2017, "Detenção de Crianças Imigrantes", dizendo: "O consenso de especialistas concluiu que mesmo a detenção breve pode causar trauma psicológico e induzir riscos de saúde mental a longo prazo para as crianças.".Um documento, apoiado pela Comissão Europeia, elaborado pela The Initiative for Children in Migration, em conjunto com a Eurochild e outros parceiros, publicado em março de 2019, afirmava: "A detenção por imigração é uma medida extrema com impactos nocivos de longa duração sobre as crianças. Os profissionais médicos relatam que 85% dos pais e filhos detidos sofrem consequências negativas para a saúde mental. Para as crianças, o impacto na saúde, no desenvolvimento psicossocial e académico é ainda mais profundo. Crianças detidas apresentam sintomas de depressão e ansiedade, problemas de sono, incluindo pesadelos, dificuldades alimentares e queixas somáticas, assim como problemas emocionais e comportamentais. A detenção pode ter impactos negativos duradouros no desenvolvimento e nos resultados da vida, mesmo que seja por períodos curtos e realizada nas chamadas "instalações específicas para crianças".A Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa iniciou uma "campanha para acabar com a detenção de crianças por motivos de imigração" que incluiu uma observação sobre as "consequências negativas para a saúde": "Como demonstrado em vários estudos e documentos relevantes, independentemente das condições, a detenção pode levar a uma série de consequências negativas para a saúde das crianças. Mesmo se detidas por períodos curtos, o bem-estar psicológico e físico das crianças pode ser prejudicado e o seu desenvolvimento cognitivo comprometido." O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem concluiu nas suas decisões que "a extrema vulnerabilidade" da criança "é o fator decisivo e prevalece sobre as considerações relacionadas com o estatuto de imigrante ilegal" (art. 91 do caso Popov vs. França e art. 55 do caso de Mubilanzila Mayeka e Kaniki Mitunga vs. Bélgica)..Portugal: jovens acolhidos em sobressalto.Essa é uma das realidades com que a equipa do Conselho Português para os Refugiados lida, dia a dia, em Lisboa. Na Casa de Acolhimento para Crianças Refugiadas vivem, neste momento, 51 jovens que chegaram não acompanhados a Portugal. Só há quatro raparigas. São quase todos adolescentes (os mais novos têm 11 e 12 anos) africanos. Quando foi criada devia acolher 13 menores. Está sobrelotada. Por esta casa, gerida pelo Conselho Português para os Refugiados, já passou um campeão nacional de boxe (afegão) e vários atletas de exceção. Os jovens chegam aqui, depois de passarem os tais sete dias, máximos, de detenção. O Tribunal de Família e Menores atribui ao CPR, a pedido do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, a tutela. Na casa têm portas abertas, escolas públicas, apoio e aconselhamento, bicicletas. Há até dois tapetes, virados para Meca, no último andar..Quando ali chegam, quase sempre, os jovens estão em sobressalto. "A desconfiança faz parte da capacidade de sobrevivência", explica Mónica Farinha, a diretora. O compromisso das mulheres que gerem a casa é claro: "Manter a palavra." Na parede da biblioteca da casa está pendurada uma folha A4 com uma pergunta: "O que nos faz felizes?" Só tem uma resposta, tão curta que até lhe falta uma letra: "Muita coisas.".*Com o consórcio europeu de jornalismo de investigação Investigate Europe. Investigate Europe é uma equipa de jornalistas de nove países que pesquisam conjuntamente temas de relevância europeia e publicam os resultados em toda a Europa. .O projeto é apoiado pelas Fundações Schöpflin, Rudolf Augstein, Hübner & Kennedy, Fritt-Ord, Open Society Initiative for Europe, Calouste Gulbenkian, Cariplo e doadores privados. .Os meios de comunicação social para a investigação sobre os imigrantes menores detidos incluem Der Tagesspiegel, Diário de Notícias, Il Fatto Quotidiano, Der Falter, Klassekampen e Newsweek Polska. Colaboraram neste trabalho os jornalistas Wojciech Ciesla, Ingeborg Eliassen, Juliet Ferguson, Anita Komuves, Nikolas Leontopoulos, Maria Maggiore, Stavros Malichudis, Leila Minano, Nico Schmidt, Harald Schumann e Elisa Simantke.