Memórias e palavras dos "pecadores" sexuais

<em>Pray Away</em> documenta de forma perturbante e esclarecedora a crueldade da "terapia de conversão" apostada em "purificar" gays, lésbicas e pessoas LGBT.
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Recentemente apresentado no Festival de Tribeca, o documentário Pray Away, primeira longa-metragem de Kristine Stolakis, é um dos grandes acontecimentos na atualidade do streaming (Netflix). Nele encontramos um retrato multifacetado da chamada "terapia de conversão" nos EUA. A saber: uma impostura pseudocientífica, quase sempre promovida por instituições religiosas, visando a "purificação" de gays, lésbicas e pessoas da comunidade LGBT, "devolvendo-as" à condição de heterossexuais.

Recorde-se que há um belo filme de ficção sobre o mesmo tema: Boy Erased - O Rapaz que Sou (2018), com Lucas Hedges, Nicole Kidman e Joel Edgerton (também realizador). O filme de Stolakis surge com o subtítulo português Prece Antigay. Pray Away é, de facto, uma condensação de "pray the gay away", expressão que equivale a qualquer coisa como "rezem para que o gay se liberte". Em última instância, as instituições que fomentam tal prática procuram que os "pecadores" sexuais reencontrem uma suposta verdade original, passando a ser identificados como "ex-gays".

A mensagem pedagógica de Pray Away pode ser resumida através das palavras de uma mulher que viveu e sobreviveu para contar a sua história - vemos, aliás, a cerimónia de casamento com a sua companheira. Diz ela: "Sofri um trauma que me levou a sentir muito ódio de mim própria. Mas sobrevivi. Estou muito feliz e encontrei alguém que amo muito. Nós estamos bem, mas nem toda a gente está. Os líderes do movimento estão a fazer aquilo que acreditam ser o melhor para todos nós. O problema é que eles pensam que ser uma pessoa completa e saudável é tentar encaixar-nos em algo que não podemos ser."

Recusando o vício normativo de algumas formas de militância (nos mais variados domínios), não se trata de eleger um conjunto de personagens como encarnação unívoca do "mal", de modo a criar a ilusão de que, de modo mais ou menos mágico, tudo se compõe se não entrarmos no "território" dessas personagens. Aliás, uma das componentes mais perturbantes, e também mais esclarecedoras, de Pray Away é o conjunto de testemunhos de alguns daqueles líderes, dando conta do seu próprio processo de consciencialização, da cruel missão de "libertação" que protagonizaram ao reconhecimento do direito de cada um viver a sua identidade sexual.

Há pouco mais de uma semana, numa entrevista ao canal ABC, Stolakis sublinhava a trágica dimensão social do problema, lembrando que a "terapia de conversão" existe em vários continentes, sabendo-se que, só nos EUA, pelo menos 700 mil pessoas foram sujeitas a alguma das suas variantes; a prática tem sido implementada por "organizações religiosas mais ou menos tradicionais", em particular "comunidades cristãs mais conservadoras".

Recusando qualquer maniqueísmo moral (muito menos moralista), Pray Away distingue-se, afinal, por um dos mais perenes valores do olhar documental: aplicar o cinema para conhecer as grandes clivagens sociais, contornando as generalizações fáceis e dando conta das singularidades individuais.

dnot@dn.pt

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